‘A biblioteca básica de Sacha Calmon’

Reproduzo abaixo, uma matéria publicada originalmente no site Consultor Jurídico, em 2009, sobre alguns livros que considero essenciais:

A biblioteca básica de Sacha Calmon

Por Alesandra Cristo

Religião, mitologia, filosofia, antropologia e história. É nesse ambiente que gosta de passar as horas um dos mais citados doutrinadores do Direito Tributário no país, o ex-fiscal de rendas e professor titular de Direito Tributário e Financeiro na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Sacha Calmon Navarro Coelho. Nas poucas horas em que não está debruçado sobre pareceres ou dando aulas — que ele faz questão que não sejam menos de quatro por semana —, o tributarista deixa a mente livre das alíquotas e bases de cálculo para mergulhar em livros que discutem a natureza e os efeitos da fé sobre o ser humano. Para ele, esses temas estão intimamente ligados ao desenvolvimento da espécie humana e da formação da civilização. “Somos uma civilização baseada no medo. Vivemos sob crenças que instituíram, por exemplo, o medo do inferno”, explica.

Paixão e razão

A paixão do professor pelo tema fica evidente ao se fazer uma visita a sua biblioteca particular, com mais de três mil exemplares. Boa parte dela é dedicada a clássicos do estudo da humanidade, como O Fenômeno Humano, de Pierre Teilhard de Chardin. “Mesmo sendo jesuíta, Chardin enxerga a teoria evolucionista de Charles Darwin com olhos científicos”, admira-se o professor.

A Ilusão da Justiça, de Hans Kelsen, merece destaque como obra filosófica, e Sociedade Antiga: investigações sobre as linhas do progresso humano desde a selvageria, através da barbárie, até a civilização, do antropólogo Lewis Henry Morgan, também está entre os que não poderiam faltar. “A selvageria precedeu a barbárie em todas as tribos da humanidade, assim como se sabe que a barbárie precedeu a civilização. A história da raça humana é uma só — na fonte, na experiência, no progresso”, defende Morgan na obra.

Visão pessoal

O envolvimento com o assunto levou Calmon a escrever sua própria obra voltada à discussão, de forma laica. A História da Mitologia Judaico-Cristã deve deixar o prelo e chegar às livrarias. “Detestava o catecismo católico, porque nos ameaçava com o inferno. Nunca compreendi essa visão de Deus, de um juiz severo e implacável. Por isso escrevi o livro”, explica. A obra se junta ao acervo de mais de 50 livros publicados como autor e co-autor, a maior parte jurídicos.

A antropologia brasileira também chama a atenção do professor e doutor em Direito. Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, é um dos que mais marcaram. O livro deu nova luz ao entendimento do processo de formação das raças e da cultura brasileiras, amalgamadas pela convivência nos engenhos de açúcar. A relação, no entanto, nunca foi de iguais, segundo o autor. “O que houve no Brasil foi a degradação das raças atrasadas pelo domínio da adiantada”, diz Freyre na obra.

Primeiras leituras

O interesse de Calmon pelas letras veio cedo, com o clássico O Pequeno Príncipe, do jornalista e piloto francês Antoine de Saint-Exupéry. Longe de ser uma obra somente para crianças, o livro trata de temas filosóficos de maneira poética e enigmática, despertando a imaginação. “É lendo que se aprende a língua e sua riqueza vocabular e estilística”, diz o professor. Foi na adolescência, porém, que Calmon descobriu o prazer em ler. O escritor baiano Jorge Amado foi o responsável, com Capitães de areia e O país do Carnaval, cacau, suor.

Foi na adolescência que Calmon sentiu-se instigado a seguir os rumos do Direito, ao ler A Origem da Família, do Estado e da Propriedade Privada, de Friedrich Engels, ainda no ginásio. “A obra parte do fundamental, do homem como ‘ser de necessidades’”, explica.

Um teste vocacional fez o resto. “O teste me remeteu para o jornalismo, a literatura, a diplomacia e o Direito, e acertou”, afirma. Até então, ele pensava em ser médico psiquiatra e psicanalista, mas o fato de haver muitos médicos na família desviou seu interesse. Além disso, o trabalho ajudou na familiarização com questões fiscais. “Virei tributarista porque fui, aos 26 anos, fiscal de rendas”, conta.

Por esse tempo, Engels e Karl Marx seduziam o raciocínio do jovem Calmon, de 23 anos, com Ludwig Fuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã. “É uma crítica demolidora de toda filosofia, especialmente a idealista e alienada, como as de Kant e Hegel”. Para o tributarista, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, filósofo criador do idealismo absoluto a partir da dialética de Heráclito, foi o precursor da selvageria de Hitler por “encarnar o espírito absoluto no Estado”. “Somente o germanofilismo explica essa admiração berrante dos brasileiros pseudocultos por tudo que é alemão em filosofia. Eu, ao contrário, admiro o gênio mecânico deles. Meus carros são alemães e são incomparáveis, assim como a cerveja”, resume.

Literatura

Estudos de religião são o grande prazer do professor. Na extensa lista das obras preferidas estão A Bíblia Não Tinha Razão, dos escritores israelenses Israel Finkelstein e Asher Silberman. O autor Jack Miles, da escola de críticos de Nova York, também é um dos preferidos. Cristo: Uma Crise na Vida de Deus, e Deus, Uma Biografia são análises com base em relatos bíblicos admiradas por Calmon.

Mesmo os romances prediletos não se afastam dos temas religiosos. O Crime do Padre Amaro, do português Eça de Queiroz, e os atuais campeões de vendas O Código Da Vinci e Anjos e Demônios, de Dan Brown, estão na lista dos melhores, assim como Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano. Na obra de Herculano, um humilde soldado espanhol pede em casamento a filha de um duque, e é rejeitado. Frustrado, se entrega ao sacerdócio, mas se torna heroi ao lutar contra os espanhois. Quando a oportunidade de ter de novo a amada finalmente vem, ele a rejeita em função de seu voto de celibato.

Livros jurídicos

Parte da vida de Sacha Calmon, os livros jurídicos mais valiosos são A Introdução à Ciência do Direito, de Hermes Lima e Direito Processual Tributário, de Leandro Paulsen. Hermes Lima, que chegou a ser ministro do Supremo Tribunal Federal, apesar de pouco conhecido em São Paulo, tem obra “deslumbrante”, segundo o professor. As posições de Rui Barbosa, Pontes de Miranda, Aliomar Baleeiro e Amilcar de Araújo Falcão também foram determinantes em sua carreira. “São simplesmente maciços e coerentes, juristas realistas sem contaminação ética ou religiosa”, diz.

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