O amigo russo

Não faz sentido a existência de frotas e dezenas de bases militares americanas mundo afora.

Tenho uma gravata “Trump” feita na Guatemala e duas camisas, uma feita na Turquia e outra no Canadá. Trump faz parte da elite empresarial americana (2% da população de 330 milhões), que produz onde a matéria-prima custa menos e esteja ao lado, e onde os salários sejam, significativamente, menores que os dos americanos, cujas empresas estão espalhadas pelo mundo em desenvolvimento (não, porém, na Europa Ocidental e no Japão). Duvido que Trump consiga trazer essas empresas de volta, cortando pela metade os impostos e isentando a internação dos lucros obtidos no exterior.

O amigo russoDesde a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, e a grande depressão econômica que se lhe seguiu até 1941, o sonho americano e a doutrina do destino manifesto estiveram mortos. O Central Park era um favelão, e só 30% da população tinham aquecimento a gás encanado. Foram 12 anos de intensa penúria. Basta ler o livro Tempos muito estranhos da Ed. Nova Fronteira, de 1994. A Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939, não incluiu a América, embora Franklin Delano Roosevelt quisesse unir-se ao Reino Unido. Forçou — com contrainformação — o Japão a bombardear Pearl Harbor, no Havaí, pelo receio de que os americanos, a partir dali, os atacassem. Erro fatal induzido pela sagacidade de Roosevelt.

A Alemanha estava convicta de que, sem a ajuda da América, o Reino Unido seria estrangulado (os seus submarinos estavam acabando com a frota inglesa). Se atacassem a Rússia, tomando Petrogado, hoje São Petesburgo, e Moscou, as três principais potências do Eixo (Alemanha nazista, Itália fascista e Japão imperial) dominariam o mundo e isolariam os EUA, no máximo, com mais um ano de guerra. O ataque idiota japonês tirou o isolacionismo que Roosevelt não conseguiu tirar das mentes e corações sofridos daquelas gerações americanas da primeira metade do século. Os americanos decidiram ir à luta. O Japão dominava a Ásia, exceto a Índia. Haveriam de ver os americanos sobre Tóquio. E a Alemanha triunfante parou ante uma Rússia que se não dobrava.

Os deuses da guerra entraram em ação. O Japão, cometida a insanidade de atacar os EUA, viu a Rússia resistir ao avanço alemão tenazmente, perdendo 26 milhões de almas entre civis e militares. A guerra no leste foi cinco vezes mais intensa que no fronte ocidental. Em 1944, a Rússia fabricava um tanque de guerra a cada dez minutos. Retomou rapidamente da Alemanha todo o leste europeu e destroçou os exércitos alemães, numa guerra de pinças impressionante. Foram os primeiros a pisar no solo alemão e a chegar a Berlim, cometendo o erro de dividi-la em quatro partes (URSS, EUA, França e Reino Unido), porém dentro do território conquistado, e que veio a se tornar a Alemanha Oriental reunificada já no nosso tempo.

A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) não faz mais sentido, pois a contraparte, a União Soviética, no Leste Europeu, e o Tratado de Varsóvia não existem, nem tampouco o comunismo. O PIB americano é quase quatro vezes maior e tem o dobro da população russa. Mas só se vai e volta hoje da estação espacial em artefatos russos, possuidora, ademais, de caças supersônicos, bombardeiros e mísseis transcontinentais em silos terrestres e bases submersas. Putin é um líder enérgico e popular. Para Trump, a Rússia é oportunidade de negócios e a União Europeia, uma forte concorrente. Como se não bastassem, o Japão e a China, cujo destino manifesto é o de superar o PIB global dos EUA nos próximos 36 meses. Daí acharmos que Trump é idiota, mas não o bufão pintado pelos auditórios democratas, a manter o mundo desenhado pelo fim da Segunda Guerra em 1945.

Não faz sentido a existência de frotas e dezenas de bases militares americanas mundo afora. As guerras hoje — se houver — se decidem em poucos dias com mísseis e artefatos atômicos de alarmante intensidade. O remanejamento do orçamento militar americano é urgentíssimo, liberando dinheiro para outros fins. Ser o guardião do mundo livre é retórico e, sobretudo, caríssimo.

A técnica de enganar o povo americano com o perigo russo é idiota. A Rússia desde São Petersburgo, no Báltico, até as ilhas Kurilas e o Porto de Vladivostok, no mar do Japão, é lugar geopolítico inteligente para os interesses norte-americanos. A alça em torno do Polo Norte é econômica e militarmente um lugar estratégico. Posso estar enganado, mas uma nova geopolítica está se desenhando. Resta combinar com os russos, aliados do Irã e da China. Ambos combatem, com eficácia, o fanatismo islâmico. Mas é só isso.

Onde Trump mete os pés pelas mãos é na política econômica, que vai gerar uma ilusão de crescimento interno e, depois, o colapso da economia, com turbulências no comércio internacional. Infraestrutura e militarismo criam investimentos, sim; e dívidas dobradas. Os EUA aguentam? O PIB está empatando com a dívida pública. Sejamos sinceros: é um homem inteligente, mas de uma falta de autocrítica assustadora. Superou o personagem resgatado por Freud da rica mitologia grega. Vai ser narcisista e prepotente assim no quinto dos infernos.

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