Negligências

Sacha Calmon
Advogado, coordenador da especialização em direito tributário da Faculdades Milton Campos, ex-professor titular da UFMG e UFRJ

O número total de mortes chegará, talvez, a 650 mil vidas perdidas para a pandemia. Proporcionalmente à nossa população, estamos em primeiro lugar

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) atestou a queda, desde julho, dos indicadores de monitoramento da pandemia de COVID-19 no Brasil, como internações e mortes, o que em grande parte se deve ao avanço da vacinação. No entanto, a instituição também observa a perda contínua de velocidade desta e reforça a necessidade de cuidados como o uso de máscaras, distanciamento social e exigência de comprovante de vacinação.

Até terça-feira desta semana, 72,07% da população brasileira já havia recebido a primeira dose e 49,61% a segunda dose ou a dose única. A média móvel de mortes caiu de 500 para 342. Mesmo com essa queda, o número total de mortes chegará, talvez, a 650 mil vidas perdidas para a pandemia. Proporcionalmente à nossa população, estamos em primeiro lugar. É tristíssimo.

Tem grande importância, prática e simbólica, a atuação da cientista carioca Sue Ann Clemens, que chefiou os testes clínicos da vacina AstraZeneca/Oxford no Brasil. Aos 52 anos, Clemens é pediatra, pesquisadora, chefe do comitê científico da Fundação Bill e Melinda Gates, professora de Oxford e diretora do Instituto de Saúde Global da Universidade de Siena (onde criou o primeiro mestrado em vacinologia do mundo).

Casada com o médico e pesquisador alemão Ralf Clemens, foi ela, com sua rede de contatos, quem obteve financiamento do Instituto D’Or e da Fundação Lemmann para a comprovação da eficácia da vacina no Brasil. Essa saga está relatada em “História de uma vacina” (Ed. Intrínseca, 208 páginas, R$ 49,90). No livro, que também fala de sua vida e formação, Clemens dedica um capítulo para as mulheres. “As mulheres são invisíveis?”, diz. “Vivem no anonimato. Percebi que para fazer uma carreira internacional precisava trabalhar o dobro do que um homem.” Ela fala desses assuntos em entrevista ao Valor.

Países desenvolvidos, como os Estados Unidos e outros, têm tido dificuldade em convencer as pessoas a se vacinarem. Qual a solução? Clemens responde: “Não é de um dia para o outro que isso muda. O Brasil tem essa tradição porque há décadas somos auxiliados por um órgão muito importante na América Latina, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), braço da Organização Mundial da Saúde (OMS). Tanto que a cobertura de imunização de doenças como pólio e sarampo é muito mais significativa nas Américas Central e do Sul do que em outras regiões de todo o mundo. Nós dizemos que os países latino-americanos são subdesenvolvidos, mas vai ver a cobertura da vacinação nos países desenvolvidos… A Opas tem um papel fundamental no trabalho de unificar políticas e estratégias de saúde pública, o que abre caminho para reunir formadores de opinião, governos e líderes financeiros para sentar em volta da mesma mesa e discutir. E a Opas também tem um fundo que ajuda a baixar os custos das vacinas e consegue negociar muito melhor do que cada país individualmente”.

Tudo acontece muito rápido. “As vacinas evitam doenças graves, mas não totalmente; para algumas doenças. a eficácia é de 50%. No caso da pandemia de COVID, a vacina tem uma cobertura falha em termos globais, e surgem as novas variantes. Contra elas, as vacinas atuais funcionam um pouco menos, já que todas as que chegaram ao mercado foram desenvolvidas contra a cepa de Wuhan, a original. E ainda não temos vacinas para as crianças. Além disso, as vacinas de RNA mensageiro (Moderna e Pfizer-BioNTech) foram as primeiras desenvolvidas no mundo com essa tecnologia. Já existia havia 10 anos, mas é a primeira vez que usamos. Tudo isso justifica a manutenção dos cuidados e os meios de prevenção como as máscaras”, diz a cientista.

Nunca tínhamos visto tanta transferência de tecnologia de um país para outro. A capacidade de produção mundial de vacinas era muito menor, e isso foi um impasse para as grandes farmacêuticas. Tivemos que criar formas inovadoras de resolver a questão de escala, aduziu a cientista.

Mas continuamos sem ter produção na África, o único continente nessa situação. “Outra coisa: na hora H, vimos que faltava capacitação de pessoal não só na linha de frente, mas faltava experiência para lidar com um leito de UTI, e muita gente não sabia fazer pesquisa.”

É preciso capacitação contínua e constante. E o monopólio de certos produtos não pode continuar. “Nas próximas gerações, o mundo não poderá ainda depender da China para fabricar máscaras e ventiladores.”

O que esse escriba que assina a matéria não entende é o porquê de Bolsonaro ter resistido às vacinações. Por acaso sois rei? O repúdio à tese de enfrentar a morte com coragem para obter “imunidade de rebanho” é do povo brasileiro, que não é feito de soldados, mas de pessoas vulneráveis, comuns.

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