Judaísmo e cristianismo (ira e amor)

Mesmo que descontemos a fúria de Jesus a expulsar os mercadores do templo, continua a ser o Sermão da Montanha um discurso em prol do bem, da paz e do amor

Deus judaico era violento, irascível, castigador e exclusivo de um só povo. Jesus virou universal, obra de Paulo.

Este ethos violento mesclado de piedade, mas restrito ao círculo dos fiéis, será herdado pelo cristianismo antes mesmo de assumir o trono romano. Primeiro foram as heresias e as declarações de hereges (anátemas). Depois vieram as perseguições, as cruzadas, as excomunhões, as abjurações, a inquisição e as guerras religiosas entre católicos e protestantes, por mais de 200 anos, ainda latente na Irlanda, a ponto de muitos enxergarem na figura do papa as sombras do anticristo. É hora de voltarmos às premissas de Miles e sua análise Dele. No livro Deus, uma biografia.

“Judeus e cristãos sabem que a Bíblia cristã tem duas partes distintas: o Antigo Testamento e o Novo Testamento. Os judeus podem se ofender ao ver sua escritura sagrada qualificada de ‘antiga’, em comparação com a Bíblia cristã. Mas ambos, inclusive os sofisticados críticos literários de ambas as fés, invariavelmente falam da Bíblia hebraica e do Antigo Testamento como uma mesma obra com dois nomes diferentes. Mas não são exatamente a mesma obra. (…) O conteúdo é o mesmo em ambos os casos, mas não a ordem. Por obra de mãos cristãs, transfere-se a grande coleção profética – Isaías, Jeremias, Ezequiel e os 12 profetas menores – do meio para o fim, deixando no meio o que chamamos antes de livros do silêncio, que compreendem Jó, Lamentações, Eclesiastes e Ester. A diferença entre esses dois arranjos é crucial para uma biografia de Deus”, diz Miles.

(…)

“(…) os cristãos do Império Romano – grupo de classe baixa, pouco educado, sem nenhuma tradição literária secular e, enquanto religião nova, também sem muitas tradições sagradas a preservar – adotaram o novo dispositivo imediata e universalmente. O códex pode ser, de fato, invenção deles. Quem quer que o tenha inventado, o fato é que sua entusiástica adoção pelo cristianismo deu à nova religião uma vantagem tecnológica que sem dúvida favoreceu sua divulgação” (ob. cit. págs. 27/29). A Torá foi engolida e gerou a trindade teísta.

“O Deus venerado pelo antigo Israel brotou de uma fusão de numerosos deuses que uma nação nômade encontrou em seu vagar. Um leitor interessado em rastrear esse processo, historicamente, pode fazê-lo por meio de impressionantes estudos técnicos como Yahweh and the gods of Canaã, de William Foxwell Albright, Canaanite myth and hebrew epic, do aluno de Albright Frank Moore Cross, e The early history of God, pelo aluno de Cross Mark S. Smith. São obras de imaginação controlada e de maciça erudição. (…)” (ob. cit. pág. 37).

Javé é poder (o pai), Jesus é um amor (o filho). Há nisso cinismo e uma descontrolada união (óleo e água).

Para Miles, a “ira de Deus assume formas distintas”, e o profeta Isaías parece procurar metáforas ainda mais fortes para descrevê-la: “O nome do Senhor vem de longe, ardendo na sua ira e lançando espessa fumaça; seus lábios estão cheios de indignação e sua língua é como um fogo destruidor; sua respiração é como um rio que transborda e chega até o pescoço – para peneirar as nações com a peneira da destruição e colocar no queixo dos povos um freio de fazer errar (Isaías 30, 27)”.

Esse Isaías, violentíssimo, é o mesmo que depois fala do “servo sofredor”? A resposta é SIM! A Torá confirma a assertiva: o servo sofredor é Israel surrada e castigada. A ira de Deus traz destruição ao povo, como ocorreu nos sucessivos desastres de Isaías 9, 8-21 (ver Ezequiel 5, 13-17), com a repetição da frase “por tudo isso, sua ira ainda não se aplacou e sua mão permanece erguida”. Traz também miséria às pessoas, como se pode ver nos Salmos (por exemplo: 88, 16; 90, 7-10; 102, 9-12).

O que provoca a ira de Javé? Muitas vezes, parece não haver nenhuma razão. Depois que Davi enterrou Saul, “Deus se aplacou para com a Terra” (2 Samuel 21, 14); mas, nos versículos 24, 1, “a ira do Senhor tornou a acender-se sobre Israel”, embora nada tenha ocorrido nesse intervalo. Com mais frequência a ira desponta após sinais de comportamento inadequado, como com os filisteus no livro de Ezequiel (25, 15-7). Jesus só falava em amor e perdão e era contra o judaísmo oficial.

São duas matrizes religiosas.

O texto básico do cristianismo, ao meu sentir, mesmo que descontemos a fúria de Jesus a expulsar os mercadores do templo (os comerciantes vendiam muitos bichos para serem consumidos nas piras sacrificiais, em louvor a Javé no Templo de Jerusalém), continua a ser o Sermão da Montanha, um discurso em prol do bem, da paz e do amor.

Faça seu comentário