Cartago existiu na Líbia

O futuro árabe está sendo jogado na Líbia onde a todos interessa a riqueza do petróleo, um regime democrático e a liberdade de oportunidades.

Dois fenômenos ainda não devidamente quantificados estão nos bastidores da denominada primavera árabe: o papel conscientizador da rede de TV Al Jazeera, com edições em inglês, árabe, turco e farsi, e as redes sociais da internet. A Turquia, cujo povo é turcomano, originário da Ásia Central, e o Irã, habitado por persas, não são árabes, mas a geopolítica, a cultura e a religião que professam integram os dois ao planeta islâmico, exatamente no lugar onde se concentram, geograficamente, os pilares do islã. Fora dali, encontramos muçulmanos na península européia dos Bálcãs, no Norte inteiro da África (Magreb), inclusive na África atlântica, a começar pelo Marrocos e, nela ainda, Sudão abaixo, no chifre da África, na costa ocidental, além da Nigéria e nas ilhas da Indonésia e Malásia na Ásia.

Os islamitas, como os judeus e cristãos, ao cabo, estão em todas as partes, sem esquecer os pastchuns (Paquistão e Afeganistão). Mas, se dividíssemos o mundo em porções, a partir do Japão, a caminho da Europa e depois do Atlântico, rumando para as Américas, teríamos quatro faixas religiosas bem compactadas. Nos países amarelos da Ásia, o budismo, o tao e o xintoísmo. No subcontinente indiano o hinduísmo e o janismo (minoritário). No Oriente Médio e Próximo, avançando pela franja africana acima do Saara, o islamismo (o judaísmo é um grão de areia). Na Europa e nas Américas – por herança dos impérios romanos do Ocidente e do Oriente (Constantinopla) – o cristianismo. A história e a geografia são essenciais à sociologia das religiões.

Interessa enfocar as ruas propriamente árabes. A península arábica com o país saudita e os Emirados, com pouca gente e muito petróleo. Os países da Mesopotâmia e arredores: Síria, Iraque, Líbano e Jordânia, e o Norte africano: Egito, Líbia, Tunísia, Argélia e Marrocos.

Em todos eles, desk e laptops, smartphones, a familiaridade com as línguas inglesa e francesa e os programas da rede Al Jazeera, legitimada culturalmente para representá-los, fizeram milhões de muçulmanos abaixo dos 40 anos desenvolver visões novas do mundo. Podemos imaginar namorados de mãos dadas nas universidades do Irã e nas ruas cosmopolitas da Turquia. Mas é nos bazares das ruas propriamente árabes, depois que o Moezim encerra a sua prece a Alá, o misericordioso, que a rede Al Jazeera informa e forma opiniões críticas. Não será exagero afirmar que a primavera árabe tem duas propostas jamais vistas: a uma, a demanda por sociedades democráticas, pluralistas e participativas. A duas, regimes econômicos baseados na livre iniciativa e na divisão equitativa das riquezas do subsolo (petróleo e gás), de modo a desenvolver os países e povos, devendo a religião recolher-se à esfera particular dos crentes, algo inadmissível pelos wahabitas da península arábica e os xiitas de qualquer lugar, mas admissível e desejável pelos sunitas.

Importa dizer que dentre os 41 países muçulmanos somente a Turquia é uma democracia laica e constitucional. Entre os árabes somente o Líbano é uma democracia. A Al Jazeera pertence a um emir do Catar. Não interfere na programação, como um esclarecido Michelangelo, partícipe das irmandades saídas das trevas da Idade Média européia. As mensagens dele eram cifradas, pelo temor ao papado. As do Emir não, alcançam uma congregação política e religiosa imensa. Essas novas gerações árabes estão fazendo muito mais pela democracia na região do que as esquadras norte-americanas. Esses jovens não passaram pelo colonialismo europeu, as guerras judaicas ou o pan-arabismo, que criou de um lado exércitos nacionalistas no início e corruptos depois, e os partidos Baats, à feição de únicos, pretensamente laicos. A primavera árabe quer destruir as velhas estruturas, mas não será fácil pela mistura de tendências que vão desde as teocracias xiitas às ditaduras sunitas, passando pelas monarquias arcaicas, caso da Arábia Saudita.

Por ironia é na Líbia que o porvir está mais próximo. Kadafi não tinha exército – que tutela em muitos países árabes o poder civil – e exerce atividades lucrativas, como no Egito. Ele tinha milícias e mercenários. Um autocrata servido por guardas pretorianas. Hoje 90% dos líbios vivem em centros urbanos. As tribos existem, mas não decidem nada. A todos interessa a riqueza do petróleo, um regime democrático e a liberdade de oportunidades. O futuro árabe está sendo jogado na Líbia. A Turquia é um capítulo vencido, uma república laica, democrática, capitalista e membro da Otan. O Irã é um retrocesso teocrático, com os dias contados. O Egito e a Tunísia estão parados. A Síria vacila. Atenção aos cartagineses do século 21. É claro que existem muitas tendências, algumas radicais. Eu aposto num país a se democratizar e a progredir economicamente.

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