As migrações e as catedrais

O Ocidente acirra os ânimos, bombardeia e deixa por lá os problemas

Vamos entrar na história e na política, quiçá, no egoísmo das nações e na hipocrisia de pessoas, sensíveis e cultas, como se consideram ou são considerados os europeus. Compartilho a percepção dos romanos, a mais longa civilização que a Terra já viu: “Homo homini lupus” ou, em vernáculo, o homem é o lobo do homem. A frase diz tudo. Por isso, e apesar disso, o grande humanista, em vez de dizer “ama o teu semelhante como a ti próprio”, pregou: “Ama a teu próximo como a ti mesmo”, para humanizar o animal egoico. Quanto mais perto de mim o “outro”, maior é o perigo. É ele que nos mata, assalta, estupra e brutaliza.

Imigrante na França (Paris)

Imigrante na Europa / Foto: Philippe Leroyer

A Europa, no oeste extremo da Eurásia, é mirrada mas importante historicamente, desde a Grécia antiga aos dias de hoje. Houve um tempo em que cravou suas garras nas américas e África para explorar suas riquezas e dizimar seus povos, a viverem ainda em primitiva simplicidade. E como exploraram e mataram! Não apenas esses dois continentes. Civilizações antigas e superpovoadas foram abordadas e dominadas pelo comércio e as armas, primeiro pelos portugueses e depois por espanhóis, holandeses, belgas, franceses, ingleses, italianos e alemães.

A China começou a livrar-se da opressão ocidental com Sun Yat-sen no primeiro quartel do século 20. Em 1950, Mao Tsé-tung tornou-a livre do Ocidente (e do imperial Japão). Parece que foi ontem a luta indômita de Gandhi, a quem Churchill chamava de “horrenda ave pernalta”, para livrar a Índia e o Paquistão (que era parte do subcontinente hindu) do domínio implacável do Reino Unido.

Após a Segunda Guerra Mundial, em 1946, o colonialismo foi aos poucos se extinguindo à medida que o expansionismo soviético e o imperialismo econômico americano despontavam com a guerra fria, hoje encerrada, limitando-se a Europa atual aos seus antigos e exíguos territórios nacionais.

Antes a Europa era batida por terríveis guerras, duas mundiais, entre seus muitos Estados nacionais, hoje reunidos a maior parte na União Europeia (UE), um espaço econômico comum, ainda politicamente indefinido. É mais que uma confederação de Estados e menos que uma federação, como a americana e a brasileira. Tirante a dissolução violenta da antiga Iugoslávia em Eslovênia, Kosovo, Macedônia, Croácia, Sérvia, Montenegro, Herzegovina, Bósnia e as vitoriosas campanhas russas na Geórgia e Ucrânia, para livrar-se do cerco da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o “continente europeu”, incluindo a Turquia (80% na Ásia), encontrou a “paz”.

Mas, de repente, os europeus em seus lares se viram, como outrora o império romano, invadidos por “gente” proveniente do Oriente Próximo e do Norte da África, de países desarticulados por campanhas militares do Ocidente (Iraque, Afeganistão, Síria principalmente) ou guerras civis das quais o Ocidente se desinteressou por motivos variados, como a da Somália e a da Líbia. O Ocidente acirra os ânimos, bombardeia e deixa por lá os problemas.

A Europa resiste, cerca, impede, desvia esse caudal humano por dois motivos, o econômico, já que o continente está em crise, e o religioso, a maioria dos migrantes professa a crença num Deus único e misericordioso, cujo nome é Alá, desagradando os cristãos. Os “outros” são diferentes, embora o cerne da concepção democrática adote a ideia da pluralidade étnica e religiosa.

Estou convencido de que, se o Ocidente – para lá do capitalismo predatório – tivesse estimulado no Oriente Médio e na África planos como o de Marshall no pós-guerra, para soerguer a Europa e o Japão, o mundo estaria melhor. Fizeram o contrário; além da odiosa política de “dividir” territórios, clãs, tribos e povos para “reinar”, fizeram adicionais destruições e fomentaram o terrorismo suicida de povos, que ficaram sem saída. Somente no Vale do Swat, no Paquistão, três milhões de seres humanos perderam suas casas. A Somália segue sem governo. A Síria perdeu 70% dos seus prédios e casas. Morreram 280 mil civis. A Líbia e o Iêmen vivem em guerra civil permanente. Tudo isso é por causa de democracia? A Arábia Saudita e Emirados são aliados democráticos por acaso? O colonialismo europeu e o imperialismo ocidental são chagas repulsivas.

O Ocidente pode pretextar razões para a brutalidade na repressão aos migrantes desesperados, menos que “são melhores” que as famílias, mulheres e crianças, que buscam pão e misericórdia sob as catedrais da “velha prostituta”, como é conhecida pelos seus milenares pecados a encanecida Europa. Agora que a França sofreu na própria carne a crueza da guerra (como a Espanha, a Inglaterra e os EUA também já sofreram), a Europa será tomada pela xenofobia. O drama humano que assola com a morte, o frio, o relento e o desespero milhões de líbios, sírios, iraquianos e somalianos será intensificado a um nível de extrema desumanidade. Rezem por suas mulheres e criancinhas, não importa a que deus.

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