A experiência jurídica e a história dos homens

A história nada mais é do que a história do homem e de seu fazer pelos tempos adentro

A primeira coisa que o homem faz, juntamente com os seus semelhantes, é produzir para viver. Produzindo, convivem. O modo de conviver vai depender, então, do modo como produzem. Não são, ou foram, as sociedades “caçadoras” diversas das sociedades “pastoras” no modo como se estruturaram? Ao produzirem, para viver, os homens usam instrumentos, agregam experiências que, em última análise, decidem sobre o tipo de relações que haverão de manter entre si. O homem é, antes de tudo, um ser de necessidades ou “homo necessitudinis”. Para satisfazer as suas necessidades básicas, sempre presentes, tem de agir, isto é, trabalhar. Eis o homo “faber”. Destarte, para satisfazer as suas necessidades, o homem “trabalha” a natureza, humanizando-a. Catando frutos, caçando, pescando, plantando, domesticando animais, minerando ou transformando metais, industrializando as matérias-primas ou comerciando, o homo faber arranca da natureza sustento para a sobrevivência com o “suor do rosto”.

Experiência jurídica e a história dos homens

Ao trabalhar, constrói a si próprio, sobrevive. A história nada mais é do que a história do homem e de seu fazer pelos tempos adentro. Seria impossível entendê-la, e as sociedades que sucessivamente engendrou, sem referi-las, fundamentalmente, às relações de produção, que o modo de produzir dos homens em cada época e de cada lugar tornou plausíveis. As relações sociais, econômicas e culturais da sociedade primitiva, da sociedade grega, romana, árabe ou visigótica, da sociedade medieval, da sociedade capitalista, foram condicionadas por diferentes estruturas de produção. Fenômeno do mundo da cultura, o direito está inegavelmente enraizado no social. Contudo, embora o discipline, paradoxalmente é um seu reflexo. Isto porque é radicalmente instrumental.

Da vida em sociedade brota o direito. Ex facto oritur jus. O “ser” e o “outro”, convivendo, realçam o social, e, por certo, do fato social projetam-se interesses, carências e aspirações a suscitar regulação. Daí valores. E são eles que fecundam o direito. Se o direito é dever ser, é dever-ser de algo, o disse Vilanova, o recifense, como a sublinhar que o axiológico não paira no ar, desvinculado da concretitude da vida. Os valores não são entes etéreos ou coleção de imperativos morais, imutáveis e intangíveis, tais quais essências sacrossantas. Não são supra-humanos nem nos chegam ab extra. Projetam-se do homem na história, do homem concreto, de um estar-aí-no-mundo-com-os-outros. Das necessidades às aspirações e, daí, às normas.

Os critérios e valores que informam historicamente a construção das legalidades vigentes trazem a marca dos interesses concretos, até mesmo conflitantes, que do fundo mais profundo da sociedade emergem à luz colimando formalização e juridicidade. Trata-se, então, de dar forma, eficácia e vigência a prescrições que se reputam certas e necessárias à convivência humana e à ordem pública. Tudo isso é feito por meio de instituições que repassam para a ordem jurídica os conflitos de interesses existentes no meio social. O Estado, assim como o direito, são instrumentos de compromisso.

A cada sociedade corresponde uma estrutura jurídica. O direito da velha Atenas não serviria, é intuitivo, à moderna sociedade americana. Uma sociedade cuja estrutura de produção estivesse montada no trabalho escravo — o que ocorreu até bem pouco tempo — não poderia sequer pensar em capitalismo e, consequentemente, em viabilizá-lo por meio de um direito do trabalho, baseado no regime de salariado. Sem dúvida, o homem é quem elabora os sistemas sociais e o próprio direito, e isso lhe é dado fazer porque é dotado de inteligência, consciência e vontade. No mundo cultural, nada sucede a não ser por meio do psiquismo do Homo sapiens. Mas, antes dele, há o “homo faber” e, antes deste, o “homo necessitudinis”.

Quem pensa, age e constrói o mundo cultural, o mundo do direito, é o homem, não o “homem-em-si”, mas o homem real, o homem concreto. O “eu”, já o disse o jusfilósofo, “é uma relação”, “relação com o mundo exterior, com outros indivíduos”. O “eu” é como um sino: se houvesse o vácuo social em torno dele, nada se ouviria. E mais: cultural na sociedade é, portanto, sua própria organização. A organização é obra do homem cujo ser, cuja alma, cujo pensamento se expressam no conjunto de relações que dele fazem um primitivo, um bárbaro, um grego, um romano, um medieval, um tipo da Renascença ou da sociedade industrial moderna ou um proprietário, um escravo, um servo ou um proletário. O pensamento humano e seus produtos culturais são desde sempre produtos sociais. A capacidade de trabalhar por meio de conceitos não só forneceu ao homem instrumentos eficientes de se resolverem problemas práticos, como transplantou a vida mental do plano sensorial para o mundo dos símbolos, ideias e valores.

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