A crise ética

Durante 2014, o Partido dos Trabalhadores (PT) fez o diabo para manter-se no poder. Não me refiro aos focos de corrupção para arranjar fundos eleitorais, mas ao atropelo à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que, com o Plano Real, estabilizador da hiperinflação, é a melhor contribuição de Fernando Henrique Cardoso a nosso sofrido país e a seu povo. Segundo o relatório do Ministério Público Federal (MP), o governo Dilma cometeu graves atentados à referida lei, pondo em risco a segurança econômica do país, já abalado com os disparates da “nova matriz econômica” praticada pelo PT.

O que pode nos sobrar de bom é a lição, para que não se repita, e a imediata extensão dos controles externos às empresas estatais e de economia mista, agenda para o sr. Cunha, na Câmara dos Deputados. Diz o MP: “Foram praticadas graves e intencionais violações à Lei de Responsabilidade Fiscal com o objetivo de expandir gastos públicos, sem sustentação orçamentária e financeira, com a agravante de terem sido cometidas em ano eleitoral, a indicar uma incidência em condutas que a LRF veio justamente combater”. E mais: “Muito embora se tenha dado ênfase às práticas que ficaram conhecidas como pedaladas fiscais, foram identificados na auditoria elementos que demonstram que, para além das pedaladas, outras graves irregularidades foram cometidas para manter ou expandir gastos públicos, em ano eleitoral, apesar da ciência pelo governo federal da redução de arrecadação e projeções de aumento de despesas obrigatórias”.

Algumas pedaladas fiscais merecem ser explicadas, embora sejam muitas as espertezas da contabilidade criativa do PT (irresponsabilidade governativa). Há uma regra de ouro na LRF proibindo que o governo use os fundos dos bancos oficiais (BB, CEF, BNDES) para as despesas. Aliás, foi para evitar essas contas-movimento que os estados da Federação foram obrigados a vender os bancos oficiais (eles cobriam em aberto os rombos nos orçamentos). Pois foi isso que a presidente Dilma fez. Depois de dilapidar as contas orçamentárias com gastos eleitoreiros, avançou no Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), no FGTS e nos abonos salariais. Como não tinha recursos disponíveis, usou o dinheiro do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal para repor os desfalques, deixando essas instituições, seus correntistas e investidores com o buraco das contas não pagas.

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Ela sabia de tudo, tanto que enviou pedido ao Congresso Nacional para mudar a meta do superavit primário em troca da liberação de emendas parlamentares no valor de R$ 10 bilhões, como se o dinheiro arrecadado fosse seu e não da sociedade. / Foto por Liade Paula

O Tesouro, exangue de recursos, avançou no dinheiro dos bancos oficiais, o que é expressamente proibido pela LRF, com o fito de tornar sérios e responsáveis os administradores da coisa pública. Para colmatar o malfeito, a Advocacia-Geral da União inventou, como se pudesse fazê-lo, um “contrato de mútuo” entre a União e os bancos oficiais mencionados, como que almejando tapar com a peneira a lesão à LRF. Ora essa, com autorização contratual ou não, o que a LRF exige é que o Tesouro não utilize recursos de seus bancos, pessoas jurídicas diversas do governo. O que esperar de governantes que arrasaram a Petrobras com negócios ruinosos, adendos contratuais superfaturados, aquisições absurdas e o congelamento dos preços dos combustíveis?

O relatório do MP é opinativo. Cabe ao Tribunal de Contas (TCU) julgar as ações da Presidência da República, mas sem a autoridade da coisa julgada dos órgãos do Poder Judiciário. Nosso modelo vem do sistema belga. A Corte de Contas é órgão auxiliar do Poder Legislativo, que tem duas funções primordiais, a de fazer leis (função legislativa) e a de fiscalizar as ações do Poder Executivo (função fiscalizatória). O TCU julga as contas e, com base nelas, o Poder Legislativo exerce suas funções constitucionais, podendo chegar ao impeachment, a teor do art. 85, §§ V e VI, da Constituição. O Tribunal de Contas, à unanimidade, para evitar a alegação de que o governo da União não fora ouvido no curso do devido processo legal, o que levaria à judicialização da questão, deu 30 dias à presidente para justificar 13 pontos da sua prestação de contas considerados atentatórios às boas práticas e à lei de Responsabilidade Fiscal.

Ela sabia de tudo, tanto que, ciente de que a gastança eleitoreira consumira os recursos da nação, enviou, em urgência urgentíssima, pedido ao Congresso Nacional para mudar a meta do superavit primário em troca da liberação de emendas parlamentares no valor de R$ 10 bilhões, como se o dinheiro arrecadado fosse seu e não da sociedade. A nação se pergunta se o TCU e o Congresso Nacional aliviarão mais uma vez as peraltices do Poder Executivo ou comportar-se-ão com a seriedade que a situação exige, aplicando a Lei de Responsabilidade Fiscal àquela que — com irresponsabilidade — a malversou, em prejuízo da nação e de seu povo, fatigado e descrente. Essa é a questão ética que se põe perante 202 milhões de brasileiros. As últimas contas do Executivo examinadas pelo Congresso Nacional remontam ao último ano de governo de FHC.

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