A aliança Moscou-Pequim

Sacha Calmon
Advogado, coordenador da especialização em direito tributário da Faculdades Milton Campos, ex-professor titular da UFMG e UFRJ

Enquanto a Rússia aspira a ser uma das grandes potências mundiais, a China parece contemplar a ideia de substituir os EUA como a principal potência do mundo

Lukyanov, acha que “a ordem mundial encabeçada pelos EUA está desaparecendo… Em seu lugar entrará uma ordem multipolar”. O próprio presidente Xi colocou a questão de forma ainda mais sucinta ao afirmar, reiteradamente, que “o Oriente está em ascensão e o Ocidente, em declínio”.

Para a Rússia e a China, a instauração de uma nova ordem mundial não é simplesmente questão de poder. E uma luta entre tradições. Enquanto a tradição liberal ocidental promove a ideia dos direitos humanos universais, os pensadores russos e chineses argumentam que se deve permitir que diferentes tradições e “civilizações” culturais se desenvolvam de maneiras diferentes.

Vladislav Surkov, no passado um influente assessor de Putin, criticou os “esforços da Rússia de se tornar uma parte da civilização ocidental”. Em vez disso, segundo Surkov, a Rússia deveria abraçar a ideia de que “absorveu tanto o Oriente quanto o Ocidente” e que tem uma “mentalidade híbrida”. Na mesma linha, os pensadores pró-governo de Pequim dizem que uma fusão de confucionismo e comunismo permite concluir que a China sempre será um país que enfatiza o direito coletivo, e não o individual. Afirmam que o sucesso da China em deter a COVID-19 reflete a superioridade do enfoque chinês na ação coletiva e nos direitos do grupo.

Pequim e Moscou argumentam que a atual ordem mundial é caracterizada pela tentativa americana de impor ideias ocidentais sobre democracia e direitos humanos a outros países, se necessário por meio da intervenção militar. Em vez disso, a nova ordem mundial que a Rússia e a China exigem se basearia em esferas de influência diferentes.

A crise em torno da Ucrânia é uma luta pela futura ordem mundial, por repousar exatamente sobre essas questões. Para Putin, a Ucrânia é cultural e politicamente parte da esfera de influência da Rússia. As necessidades de segurança da Rússia deveriam lhe dar o direito de vetar qualquer desejo da Ucrânia de aderir à Otan. Moscou também exige a possibilidade de agir como protetor dos falantes da língua russa. Para os EUA, essas exigências infringem princípios básicos da atual ordem mundial – em especial, o direito de um país independente definir sua política externa e suas escolhas estratégicas. Contudo, repeliu indignada a instalação de mísseis e armas nucleares em Cuba. Os tambores de guerra foram batidos.

A crise da Ucrânia envolve também a “ordem mundial” por ter claras implicações globais. Os EUA sabem que se a Rússia atacar a Ucrânia e criar sua própria “esfera de influência” estará fixado o precedente para a China. Durante a Era de Xi, a China construiu bases militares em todas as áreas contestadas do Mar do Sul da China. Além disso, as ameaças de Pequim de invadir Taiwan — uma ilha democrática autogovernada, mas vista pela China como uma sua província rebelde – se tornaram mais abertas e mais frequentes. Se Putin conseguir invadir a Ucrânia, crescerá a tentação de Xi de atacar Taiwan.

A Rússia e a China têm, sem dúvida, queixas semelhantes sobre a ordem mundial atual. Há também algumas diferenças relevantes entre os enfoques de Moscou e de Pequim. A Rússia está atualmente mais disposta a correr riscos militares do que a China. Mas suas metas finais podem ser mais limitadas. Para os russos, o emprego da força militar na Síria, Ucrânia e em outros países é uma maneira de repudiar a afirmação do ex-presidente americano Barack Obama de que a Rússia hoje não passa de uma potência regional. Dmitri Trenin, do Carnegie Center de Moscou, argumenta que, “para os líderes do país, a Rússia não é nada se não for uma grande potência”.

Mas, enquanto a Rússia aspira a ser uma das grandes potências mundiais, a China parece contemplar a ideia de substituir os EUA como a principal potência do mundo. Elizabeth Economy, autora de um novo livro intitulado “The world according to China” (“O mundo de acordo com a China”), argumenta que Pequim visa a uma “ordem internacional modificada radicalmente”, na qual os EUA são empurrados para fora do Pacífico e se tornam apenas uma potência atlântica. Como a região do Indo-Pacífico é hoje o núcleo da economia mundial, na prática isso deixaria a China na posição de “número um”. Rush Doshi, estudioso da China que trabalha na Casa Branca, segue linha semelhante em seu livro “The long game” (“O jogo longo”). Ele cita várias fontes chinesas para defender a ideia de que hoje a China busca claramente uma hegemonia mundial.

Para nós, estão mais claras duas coisas: (a) a existência de um mundo sem os males da supremacia de quaisquer “potências” é desejável; (b) não queremos neste mundo multipolar que nada nos impeça de praticar as liberdades individuais e sociais previstas na Constituição. Daí o “slogan”, Deus acima de tudo e a Constituição acima de todos (preservados os direitos de ir e vir e de votar). Nossas urnas são confiáveis, sim, senhor!

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