Sacha Calmon
Advogado, coordenador da especialização em direito tributário da Faculdades Milton Campos, ex-professor titular da UFMG e UFRJ
Democracias de alta renda terão de melhorar o jogo político pra convencer os países emergentes e em desenvolvimento a alinharem-se contra a China e a Rússia
Martin Wolf, o mais considerado analista do Financial Times, nos diz: A nossa é uma era de guerras culturais, de política indenitária, nacionalismo e rivalidade geopolítica. Em decorrência disso, é também uma era de divisão entre países. A tecnologia continua sua marcha transformadora. O choque da COVID trouxe consigo duas surpresas bem-vindas: a capacidade de levar adiante uma parte tão grande das nossas vidas on-line e a capacidade de desenvolver e produzir vacinas eficazes com velocidade surpreendente, embora sem distribuí-las de forma igualitária.
O mundo está dividido por esse parâmetro também. As disparidades políticas entre as democracias de alta renda, por um lado, e a Rússia e a China, de outro, são profundas. Antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, a sobrevivência de um conceito abrangente de ‘um mundo’ parecia, pelo menos, concebível, embora difícil. Mas as guerras são transformadoras. A oferta da China de uma parceria ‘sem limites’ à Rússia pode ter sido decisiva para Putin arriscar a invasão. Sua guerra é um atentado aos interesses e valores ocidentais essenciais. Ela juntou os Estados Unidos e a Europa, por enquanto. Deverá ser decisiva para a atitude da Europa para com a China: uma potência que apoia um ataque dessas proporções não é parceira. A marcha na direção do totalitarismo em ambas autocracias também, certamente, ampliará a divisão mundial.
Apesar da ascensão da China, o Ocidente, definido como as democracias de alta renda, é poderoso. Segundo o FMI, esses países responderão por 42% da produção mundial (paridade do poder de compra e 57% dos preços de mercado em 2022).
Eles também são os emissores de moedas de reserva significativas. A China detém mais de US$ 3 trilhões em reservas externas, enquanto os EUA, quase zero. Mas eles podem imprimi-las. A capacidade dos EUA e seus aliados de congelarem uma grande parcela das reservas cambiais da Rússia mostra o que esse poder significa. Mas o poder ocidental não é apenas econômico. É militar também.
O Ocidente também está profundamente dividido entre eles. Muitos políticos são defensores entusiásticos de Putin: como Marine Le Pen. Na Europa, Viktor Orbán é o mais ruidoso sobrevivente dessa trupe. Nos Estados Unidos, o autoritarismo xenofóbico – ‘o orbanismo’ – continua sendo um dos principais conjuntos de ideias de direita. O assalto promovido por Donald Trump à característica fundamental da democracia – a transferência de poder por meio de eleições justas – está muito vivo. Muitas dessas pessoas encaram a autocracia nacionalista de Putin um modelo. (Bolsonaro que o diga.) Esteve com ele, dias antes da invasão!
Mas a longo prazo a Ásia tende a se tornar a região econômica dominante do mundo. Os países emergentes do Leste, Sudoeste e Sul da Ásia abrigam metade da população mundial, contra 16% de todos os países de alta renda juntos…
De acordo com o FMI, a produção média real per capita dessas economias asiáticas saltará a partir do correspondente a 9% dos países de alta renda em 2000 para 23% em 2022, principalmente, mas não unicamente, devido à China. E essa alta tende a continuar!
As democracias de alta renda terão de melhorar seu jogo político se quiserem convencer os países emergentes e em desenvolvimento a alinharem-se contra a China e a Rússia. O Ocidente perdeu muito respaldo com suas guerras fracassadas e a deficiência de sua ajuda, notadamente durante a COVID. A maioria dos países emergentes e em desenvolvimento se esforçarão para conservar boas relações com ambos os lados.
A cooperação mundial continua sendo essencial. Por mais profundas que se tornem as discordâncias, compartilhamos este planeta. Ainda precisamos evitar guerras cataclísmicas, colapso econômico e, sobretudo, a destruição do meio ambiente. Nada disso é de maneira nenhuma provável sem pelo menos um nível mínimo de cooperação. Mas será que ela tende pelo menos a ocorrer? Não.
Os rumores de morte da globalização são exagerados. Os americanos estão a pensar que seu ponto de vista é a norma mundial. Muitas vezes não é. A maioria dos países sabe que o comércio internacional amplo não é um luxo, mas uma necessidade. A perspectiva mais provável é que o comércio internacional fique menos americano, menos ocidental e menos dominado por produtos manufaturados. No entanto, o comércio de serviços tende a explodir, puxado pela interação on-line interfronteiras e pela inteligência artificial.
A inflação se revela desenfreada de uma maneira nunca vista em quatro décadas. A pergunta sobre se os bancos centrais conservarão sua credibilidade continua sem resposta. A inflação elevada e a queda das rendas reais são uma combinação politicamente nociva. Vão se seguir agitações sociais.
A minha opinião é que a Rússia e a China são potências que se tornarão capitalistas. Essa ojeriza a elas será só por serem autocracias? Os povos de respectivos países se sentem infelizes. E agora?
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