Desde Trump, o sistema americano está sendo adulterado e há muita corrupção no Congresso e muito dinheiro nas grandes corporações.
Sacha Calmon
Advogado, coordenador da especialização em direito tributário da Faculdades Milton Campos, ex-professor titular da UFMG e UFRJ.
O sistema é diverso. A uma, as eleições legislativas, em parte, não coincidem com a da Presidência. A duas, a Suprema Corte é partidária. São democratas ou republicanos.
Por um curto intervalo, Biden parecia dominar a maneira pela qual enfrentar a pandemia do coronavírus. Mas essa aparente competência foi solapada por suas variantes sucessivas: o surto de Delta coincidiu com a queda de suas taxas de aprovação em agosto. E, agora, a variante Ômicron se propaga.
O caráter implacável da pandemia levou ao pensamento desolador de que a vida poderá agora ser marcada por máscaras e restrições eternamente.
O que é ainda mais desolador: alguns governadores republicanos relevantes – Ron DeSantis, da Flórida, e Greg Abbott, do Texas —, além de membros do Congresso, como Ted Cruz e Josh Hawley, estão se opondo à vacinação e à adoção de medidas sanitárias obrigatórias porque isso prejudica Biden e outros democratas nas eleições para renovação do Congresso, em novembro de 2022.
A normalidade que o caracteriza, de início tão bem recebida, se transformou em monotonia. Biden é uma pessoa “sem sal”.
Defensores de Biden destacam, que, apesar da falta de fascínio, ele conquistou vitórias significativas no Legislativo, e desqualificam a vitalidade de John Kennedy, Ronald Reagan, Obama ou até Trump “como superficialidade”.
O moral dos democratas não é ajudado em nada pelos esforços ineficazes e erráticos que marcam a atuação de Kamala Harris como vice-presidente.
Os mesmos problemas se voltam à fracassada campanha da vice-presidência: desordem na equipe e falta de clareza sobre qual a sua posição. As saídas sistemáticas dos membros de sua equipe foram corrosivas em Washington, que avalia os políticos de acordo com a qualidade e a fidelidade de seus colaboradores.
Equipes de políticos não se importam de trabalhar arduamente ou de suportar uma repreensão ocasional quando o colaborador admira o chefe.
Biden nada pode para evitar que a Suprema Corte derrube a decisão pendente há quase 50 anos do caso Roe vs. Wade (no qual a Suprema Corte reconheceu o direito ao aborto). O direito de abortar das mulheres já dura meio século!
A não ser para a minoria dos americanos que apoia os seis dos nove membros da corte, a sustentação verbal, ocorrida no dia 1º, foi um espetáculo apavorante, senão deprimente, de arrogância política, e não de equidistância judicial. O inventário feito pelo juiz Brett Kavanaugh das decisões da corte que anularam precedentes, em que confundiu as decisões que quase na sua totalidade aumentaram os direitos, relativamente ao caso Dobbs vs. Jackson, mostrou que ele talvez seja mais ambicioso do que inteligente. Quer aparecer.
Muitos críticos do desempenho conservador ou até radical dos juízes da Suprema Corte sobre o aborto alertaram que ele poderá minar a legitimidade da instituição, mas isso já aconteceu. As sessões de aprovação para a Suprema Corte são, atualmente, competições rudes, coalhadas de sectarismo partidário, como os últimos três juízes indicados por Trump sob circunstâncias questionáveis.
Na sustentação verbal sobre a legislação do Estado do Mississipi em questão no caso Dobbs, todos se revelaram como sendo opositores de Roe, como prometeu Trump. Quando perguntados por senadores, em seu processo de confirmação para assumir o cargo, se eles respeitariam precedentes (referindo-se a Roe), eles simplesmente mentiram. Vale dizer, respeitariam o direito já consolidado de abortar.
A menos que a corte chegue a uma decisão milagrosamente pouco representativa da maneira pela qual os magistrados reacionários se comportaram, o que sobrou de sua legitimidade terá desaparecido. Roe traçou uma linha clara: se essa linha for turvada ou eliminada, sobrevirá o caos. Mais de 20 estados estão prontos para declarar o aborto ilegal, sem exceção para casos de incesto ou estupro, como as previstas sob a legislação atual.
A brutal pancadaria que atualmente caracteriza as indicações para a Suprema Corte é reflexo do que aconteceu com a política americana. As velhas normas que faziam com que o processo legislativo funcionasse, mesmo que com crescentes ruídos, virtualmente desapareceram. Senadores de ambos os partidos colocam seus próprios interesses acima dos do partido – no caso dos democratas, mesmo que isso prejudique a situação política de seu presidente.
Muitos brasileiros já podem dizer que o presidencialismo tem os mesmos defeitos aqui observados. Desde Trump, o sistema americano está sendo adulterado e há muita corrupção no Congresso e muito dinheiro nas grandes corporações.
No Brasil, Bolsonaro faz de um tudo para difamar o STF e destruir as instituições democráticas. Contudo, está vencido na sociedade e, como Trump, não terá um segundo mandato. Sobrarão as feridas produzidas.
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