Os turcos secularistas lutam não para implantar, mas para manter a democracia e a separação entre Estado e religião
As manifestações brasileiras exigem reflexões ainda em curso, mas as manifestações de protesto contra a destruição de um parque em Istambul, cidade de 14 milhões de habitantes, para ali ser construído um shopping center, não são apenas um grito em favor do verde. Para entender o que está a acontecer na Turquia é preciso retornar ao passado remoto e recente daquela república.
Os turcos são originários da Ásia Central, lugares que hoje comportam o Azerbaijão, o Turcomenistão, o Tajiquistão, o Uzbequistão, o Cazaquistão e o Quirguistão. Começaram a chegar à península anatólica, onde está a Turquia, a partir de 1300 d.C., em vagas sucessivas, misturando-se com as populações arianas (antigos hititas) e semitas que viviam na região. Falavam e ainda falam uma língua do ramo amarelo, completamente diferente das línguas indo-europeias oriundas do sânscrito, como o farsi e outras, germânicas, eslavas e neolatinas e também das línguas semíticas (árabe, bérbere, hebraico, aramaico), que são oriundas do tronco linguístico norte-africano.
O surgimento da nação começa com a queda de Constantinopla, tomada de assalto após longo cerco em 1453. Com o passar do tempo, o império turco-otomano irá dominar todo o Oriente Próximo e parte da Europa (os Bálcãs), incluída a Hungria, que foi turca durante 150 anos. Sua extensão foi, no auge, maior que a do império greco-macedônico de Alexandre, o Grande. Nossos conterrâneos sírios e libaneses não eram turcos, tinham apenas o passaporte do Império.
Dito isso, passemos ao ano de 1920, logo após a derrota da Turquia na 1ª Guerra Mundial, a qual derroca o império otomano em favor, principalmente, das potências colonialistas, França e Inglaterra e também Rússia. Surge dos escombros um homem de grande visão política e histórica. Impede, em parte, e abrevia a ocupação do país, iniciando a sua modernização. Torna-se conhecido como Kemal Ataturk (o pai da Turquia moderna). Ele liquida o califado, proíbe o ensino religioso de qualquer credo, extingue as “madrassas”, institui a República, as eleições periódicas, o voto direto, secreto e universal, a democracia, a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Mudou o alfabeto turk para o ocidental, reformou as universidades, tornou o ensino obrigatório e escreveu uma Constituição que previa o poder das Forças Armadas de depor quaisquer governantes que intentassem reverter os princípios laicos da Constituição e a separação entre Estado e religião. O controle de constitucionalidade das leis existe, mas são as Forças Armadas que, “manu militari”, defendem o Estado democrático de direito. A Turquia é o único país na região verdadeiramente democrático. Israel, por exemplo, é um estado judeu, sem Constituição, cujo direito civil, especialmente o de família, está submetido às leis religiosas (Torá, Talmude e Mishná). Os israelenses, a maioria, se casam em Chipre, mas para escapar das normas religiosas. Os cidadãos palestinos (por raça) israelenses por nascimento não podem ser funcionários públicos nem servir nas Forças Armadas, são cidadãos discriminados. Os religiosos são dispensados do serviço militar e os direitos da mulher são menores.
Como Ataturk conseguiu fazer um estado democrático e laico numa sociedade em que 90% dos cidadãos eram muçulmanos? A uma, por causa do califado decaído pela guerra. A duas, porque o movimento partiu dos “jovens turcos”, uma elite econômica, intelectual e militar que via nas democracias ocidentais o melhor caminho para o progresso, tanto que isolaram as correntes políticas marxistas. A três, pela autoestima que deu ao povo turco, humilhado e submetido por séculos à tirania dos sultões, especialmente no campo, onde se fez uma espécie de reforma agrária. A quatro, porque as liberdades democráticas, uma vez conhecidas e praticadas, se enraízam nas mentes e corações das pessoas.
Quatro golpes militares ocorreram em defesa da Constituição na Turquia, contra os arreganhos islâmicos. Hoje, o partido do primeiro-ministro (o regime é o de república parlamentarista) conta com 52% dos votos. Dá-se que Recyp Erdogan é vaidoso e autoritário. Quer mais oito anos de poder, mudando a Constituição. É o país que mais prendeu jornalistas em oito anos. Dois, em cada 10 generais, respondem a processos por sedição. Emite seguidas leis restritivas de direitos. Desconfia-se de seu férreo desejo de submeter o Estado aos preceitos da religião, já que do ponto de vista econômico,seu governo é bem-sucedido.
Podemos então concluir que entre 80 milhões de turcos, os secularistas deram início a um confronto aberto com o governo de Recyp Erdogan para garantir o Estado democrático de direito, direitos das minorias e a separação entre o Estado e a religião (estado laico). Luta-se não para implantar a democracia, mas para mantê-la. O povo turco merece a nossa solidariedade e o nosso também, por outras razões.
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