O voto do probo Celso de Melo abriu uma enorme brecha por onde passarão as tropas do governo para livrar seus asseclas das grades
Hans Kelsen, jurista famoso, escreveu a Teoria pura do direito, tida por positivista, alheia às inspirações éticas e políticas, segundo seus detratores, e A ilusão da justiça, obra densa, filosófica, demonstrando o conflito entre a inevitabilidade do direito positivado nas leis e a pungente busca dos povos pela realização da justiça ao longo da história.
Esse conflito mostrou-se no STF quando se reabriu o julgamento de alguns crimes de certos réus do mensalão. Não se discutem os infringentes do art. 333, I, do Regimento Interno. A questão é a sua validade. Imune ao “clamor das multidões”, a gritar pela punição dos poderosos, já condenados, ou seja, pela igualdade de todos perante a lei penal. O ministro Celso de Mello desempatou a votação ao acolher os infringentes a cavaleiro das consequências éticas e políticas da sua decisão, ao fundamento de que quatro entre 11 ministros davam pela inocência de alguns réus (inutilizando os votos vencedores). Milhares de réus são condenados em primeira instância todos os anos no Brasil, sem apelação. Os infringentes foram recebidos como recurso ordinário, uma apelação esdrúxula. O ministro falou cerca de 30 vezes em “direito dos réus, de qualquer réu”. O juízo era de admissibilidade do recurso e não de mérito. Ele próprio condenara os recorrentes em toda a extensão do libelo do Ministério Público e repetirá o veredicto, caso não se aposente, como se cogita.
Prevenido o leitor do cuidado do ministro com o “direito dos condenados” a ampla defesa e recursos a ela inerentes, resta qualificá-los. São altos membros do governo e pessoas abonadas (núcleo operacional) praticantes de mais de 10 crimes, para compra de apoio político mediante formação de quadrilha, às custas de dinheiro público. Os fatos criminosos remontam a 2002-2003. Uma década já se passou.
O ponto central do voto foi uma lei do tempo de FHC que extirpava os infringentes e foi rejeitada pelo Congresso, devendo-se concluir pela eventualidade que foram preservados (em causa própria, acrescento). Mas a questão é outra. Longe de ser uma garantia do direito de defesa dos réus em geral, os infringentes são anacrônicos nos processos da competência originária dos tribunais superiores. Votos contrários e decisões por maioria fazem parte do dia a dia dos tribunais. A exigência de consenso é um absurdo. Quatro votos vencidos não anulam sete vencedores. Isso só ocorre no Brasil dos privilegiados e dos seus processos sem fim. A uma, o recurso é exclusivo das altas autoridades: presidentes de poderes, parlamentares e ministros e não de “qualquer réu”, salvo conexão. A duas, nenhum ministro mudará o voto de mérito, a menos que seja irresponsável, imperito, imprudente ou venal. A coisa está mais para procrastinação do que para o direito de defesa.
Especialistas julgam forçado haver duplo grau de jurisdição na mesma jurisdição. Para eles uma tendência está em curso: jogar no lixo os votos contrários dos ministros que saíram e colher “novos votos” dos ministros neófitos, que nem sequer votaram. Dizem não ser duplo grau de jurisdição mais outro julgamento com outra composição votante. Os novos ministros são imparciais. Mas se votarem contra o crime de quadrilha ficarão marcados.
A lógica dos infringentes é a coerência. Quando uma turma julga diversamente de outra, ou quando a matéria é polêmica nas turmas, o recurso leva o impasse ao Pleno. Fora disso, com a feição de recurso ordinário de revisão é odioso e suspeito (para tanto existem a ação rescisória e a revisão criminal). Cinco ministros não os admitiram.
A tentativa de FHC podia nem ter existido. Em verdade, o Regimento Interno do STF previu os infringentes em face da submissão do Parlamento aos chefes militares. O Executivo cassava e processava parlamentares como moscas. Em 1988, a Constituição Federal devolveu ao Congresso a competência legislativa sobre processos judiciais e o STF a perdeu. Penso que um recurso estranhíssimo, de exceção, em favor apenas de réus poderosos, não existiria em outro tempo, num Estado democrático de direito. Falta-lhe a legitimação do voto popular.
O voto do ministro Celso de Mello merece respeito. É um homem probo. Chamei-o de Varão de Plutarco. Certamente é legalista. Roberto Pompeu de Toledo asseverou: “É uma figura do Brasil que queremos, mas julgou para o Brasil que temos”. (Revista Veja – 18/9). Abriu-se com o seu voto uma enorme brecha no castelo da bela e adormecida Justiça do Brasil. Por ela passarão as tropas do governo para livrar os seus asseclas das grades. Os penalistas estão a postos. Apenas cumprem os seus deveres. Quadrilha? Jamais existiu! Vivemos no país da desfaçatez. Só nos resta obrigar o Congresso a acabar com esse recurso que só existe no Brasil e refletir como os argutos romanos há dois milênios: “Sumo jus summa injuria”. Nem tudo que é legal, justo é! O governo, ao cabo, vencerá?
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