É cediço que nenhuma lei tributária produza efeitos imediatamente, no mesmo ano de sua promulgação.
O Congresso Nacional editou a Lei 9.868/99, no intuito de preservar o princípio da não surpresa, seja do réu, do contribuinte, do eleitor, do candidato, dos partidos, dos justiçáveis em geral. A questão de fundo era a seguinte: quando o Supremo Tribunal Federal (STF) declarava inconstitucional uma lei, anulavam-se todos os atos praticados sob a sua égide, com sérios efeitos prejudiciais às pessoas e instituições. O Congresso, em nome da segurança jurídica, editou a Lei 9.868 com a seguinte dicção: “Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o STF, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. Este dispositivo, limitando o poder do STF de fulminar uma lei sem maiores considerações, ocorreu, didaticamente, no caso dos vereadores da cidade de Mira Estrela, que elegera um número maior de vereadores do que a Constituição permitia. Naquela ocasião, o STF decidiu que, apesar de ser inconstitucional a lei que permitira mais vereadores do que o permitido, teria eficácia até a próxima legislatura, caso contrário seriam nulos os efeitos já produzidos de leis municipais válidas mas votadas por uma Câmara inválida, prejudicando os munícipes e terceiros.
Comecei de um lado ao outro. É cediço que nenhuma lei tributária produza efeitos imediatamente, no mesmo ano de sua promulgação, surpreendendo os contribuintes. Temos na Constituição o “princípio da anterioridade” da lei tributária (anualidade). A lei tributária só vale no exercício seguinte. Mas quando editada em 31 de dezembro? O interstício cai para um dia! Emenda constitucional, então, acrescentou que, além da anterioridade, teríamos a noventena (antecedência mínima de 90 dias). É da cultura jurídica ocidental e do Brasil que a lei penal não retroage para prever penas e restrições a fatos já ocorridos no passado. Só retroage se for para beneficiar. Esse princípio é cláusula pétrea. A Lei Ficha Limpa não poderia mesmo entrar a viger de imediato, sob pena de ser retroativa em certos casos, além de surpreender candidatos, a vulnerar o devido processo eleitoral que se não inicia com as convenções partidárias, mas com a inscrição partidária dos candidatos, verificação do domicílio eleitoral pelas agremiações etc. (homologação das pretensões eletivas), sem as quais os nomes não poderiam ser objetos de deliberação nas convenções dos diversos partidos. A Lei Ficha Limpa chegou atrasada por culpa da demora da iniciativa popular e do Congresso em publicá-la, depois de emendá-la em vários artigos. Quando ela veio a lume, atos e fatos eleitorais estavam perfeitos e acabados, a caminho das convenções partidárias.
Compreendo a decepção do povo e as razões dos cinco ministros que votaram pela eficácia imediata da lei, por razões jurídicas e sob forte pressão do clamor popular. Esses fizeram renascer o brocardo latino salus populi suprema lex (saúde do povo, suprema lei). Foi com base nesse anexim que em várias ocasiões o Senado romano foi golpeado, abrindo caminho para o surgimento de ditadores que captavam a indignação do populacho para apoderarem-se do poder. O salus populi respaldou exílios, penas injustas, justiça sumária e governos liberticidas. As leis plebicitárias, lado outro, muita vez, foram manejadas para atingir ou enfraquecer as instituições daquele império, que durou mil anos. O ministro Luiz Fux, o voto decisivo, acompanhando o destemido voto do relator, foi emblemático. Se disse a favor da lei e de sua constitucionalidade, mas devia ela curvar-se ao princípio da anualidade da lei eleitoral. Não compreendo o terrorismo que andam a fazer sobre a sobrevivência da Lei Ficha Limpa.
Todos a queremos e pelo menos sete ministros da Suprema Corte, desde que ela respeite dois princípios pétreos da Constituição: o da irretroatividade da lei, salvo se benigna, e o da anterioridade anual de lei que altere o processo eleitoral. O ministro Fux deixou isso claro. Para o bom entendedor duas palavras bastam. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por isso, deve entrar com uma ação direta, desta vez, de constitucionalidade, se persistirem decisões desencontradas dos tribunais eleitorais em torno da eficácia da condenação em duplo grau de jurisdição, como fator analítico da vida pregressa dos postulantes de cargos eletivos. No meu entendimento não se fere o princípio da presunção da inocência penal, que se dá com o trânsito em julgado de decisão condenatória. No caso, cuida-se apenas de um parâmetro prudente de avaliação ética dos candidatos, absolutamente constitucional.
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