No Brasil, a ordem é não reagir. A segurança que a polícia nos dá em troca é nenhuma. Vigora a leniência das penas e as facilidades do sistema prisional.
Newtown, nos Estados Unidos, me obriga a falar de armas e mortes e antecipar o meu livro (156 fls.) para 2013, sobre a breve história do mal, tanto o mal natural dos fenômenos da natureza (terremotos, inundações, erupções vulcânicas, secas etc.) quanto o mal moral, o que infligimos aos outros e deles sofremos (o homicídio, o roubo, a calúnia, a tortura etc.). Na tese do livro, Deus não tem nada a ver com os dois tipos de mal, nem ele nem supostos seres malignos. Os fenômenos da natureza são ocasionais. Quando passamos a existir e ficamos no caminho dos fatos naturais, passamos a ser vitimados. Em vão, clamarmos por Deus, para evitá-los ou fazer chover para salvar a lavoura, supondo-o o “senhor da natureza”. Quanto ao mal moral, o atribuímos a nós mesmos por interferência de um ser sobrenatural, a atuar na criação, justo uma cobra transformista e falante. Lenda primitiva? Pascal percebeu o dilema filosófico da criação imperfeita: “Para Deus ser inocente, nós temos que ser culpados”. Com isso justificou o mito do pecado original.
A minha dificuldade é admitir o sacrifício do Criador. Foram seis dias laboriosos de criação, pois no sétimo descansou, como se o Todo-poderoso pudesse fatigar-se como um homem qualquer. Pois bem, com a vitória do mal encarnado na cobra pensante foi por água abaixo o homem, cume da criação, e toda a sua descendência, marcados para sempre com o sinal do pecado, da culpa e do sofrimento, além da perda da imortalidade. Que trapalhada e logo nos primórdios. Há que deixar de culpabilizar Deus por não ter evitado a desgraça que a cobra armou, danando o jovem casal primevo, com a pena passando do infrator para os descendentes. Cuidemos da violência humana a causar o mal, especificamente a morte do homem pelo homem. Fazer o bem e fazer o mal (matar animais, vegetais e nossos inimigos), garantindo a sobrevivência dos mais aptos, é conatural, deriva da condição humana imersa na evolução. Quando Javé expulsou Adão e Eva do paraíso, sequer os ensinou a sobreviver.
O homem, há cerca de 300 mil anos, disputava sua comida com os demais animais, a se devorarem uns aos outros. Até hoje é assim, menos para nós, que nos damos ao luxo de comer os demais espécimes, sem luta, depois de conquistar a supremacia sobre os reinos animal e vegetal. Se o desejo de matar está entranhado no coração agressivo e também amoroso do homo necessitudinis , um ser de necessidades que precisa satisfazê-las (sobreviver e procriar), foi preciso inventar técnicas de contenção para controlá-lo em sociedade, daí as religiões, as éticas e os sistemas jurídicos. A regra “é proibido matar”, salvo em estado de necessidade, cumprimento de dever legal (combate ou guerra), legitima defesa e coação irresistível, é universal. Quem mata sofre o castigo. Para logo, neguemos a utopia. Nenhuma religião, ética ou direito impedirá o homem de matar seu semelhante. Ajudam a contê-lo, não mudam a sua natureza. A lei deve ser aplicada severamente. Quanto mais doloroso o encarceramento, maior o teor de recuperação.
Comparemos os EUA e o Brasil. Para os norte-americanos, o porte de armas é direito constitucional. Aqui se proíbe ao cidadão tê-las, mas os bandidos as têm em profusão. Os homicídios de lá, por armas de fogo, não passam de 10% dos ocorridos aqui. No Brasil, os matadores são os bandidos e a polícia, os únicos que possuem armas legalmente. Os norte-americanos dizem que o autor do homicídio injusto não é a arma, mas o homem. Mas a liberdade total em adquiri-las deve ser disciplinada. O crime de morte está baseado na teoria da causa, primeira linha de investigação. Um país com 320 milhões de habitantes acostumados à disciplina na vida real inspira fantasias de violência em filmes, guerras e games, levando psicopatas a agir sem motivos lógicos, causando tragédias. Esse é o problema deles, reverter a cultura de violência em filmes e games e regular a compra de armas para evitar homicídios sem causa.
O nosso é diferente. Temos que disciplinar a polícia, impedir o tráfico de armas e dizimar os bandos criminosos organizados, além de educar o povo. Nas periferias, as armas brancas e o uso de álcool matam mais. O desarme da população – somente na aparência – diminui a criminalidade. Talvez sejamos mais violentos e matamos por motivos fúteis. Nos EUA, a polícia, o Judiciário e o sistema prisional funcionam, e as escolas de tiro ensinam a usar armas. Isso dissuade o bandido. Aqui, ele sabe que o cidadão está desarmado e assiste satisfeito às campanhas em prol da covardia civil. A ordem é não reagir. A segurança que a polícia nos dá em troca é nenhuma. Vigora a leniência das penas, as facilidades do sistema prisional. São duas realidades distintas. Mesmo com o cerceio das armas de fogo, matamos 10 vezes mais, sem falar no morticínio automobilístico. Perdemos mais vidas do que eles em suas costumeiras guerras imperiais.
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