Nossa Constituição analítica e a postura demandística dos poderes públicos contribuem para atulhar o Judiciário e levá-lo próximo ao caos
Existe um alto número de processos no Supremo Tribunal Federal (STF) com repercussão geral reconhecida. São cerca de 327, entre os quais 113 de matéria tributária. As ações judiciais referentes aos temas com repercussão devem ter o trâmite interrompido nos tribunais estaduais e federais até que o STF dê o veredicto. “De início, o cenário já é assustador”, afirma o ministro Marco Aurélio Mello, o mais comunicativo entre todos, em recente entrevista, “com nossa carga de trabalho, não há como preparar votos sobre tudo”. Para o mensalão, a Corte realizou sessões extraordinárias e julgamentos sem pedidos de vista já que todos os ministros haviam estudado o processo, que envolvia 38 réus. O ministro afirma que o STF tem o dever de dar celeridade aos trabalhos. “Não podemos transformar o Supremo em academia com discussões e votos intermináveis. Eu murcho quando um colega pede vista. Pedidos de vista viram perdidos de vista. O processo vai para as calendas gregas. Veja o que aconteceu com o caso da tributação das coligadas.”
Estima-se que cerca de 300 mil processos estejam sobrestados. Apenas no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) são 43.603. No Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região (São Paulo e Mato Grosso), 6.706. No TRF da 1ª Região, com sede em Brasília, há 13.181 autos aguardando julgamento – 1.132 tributários. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), há quatro mil processos parados, sendo que 1.290 são de temas fiscais. Na Justiça trabalhista também há problemas, com 32 mil recursos só no Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Há algo errado no Brasil. Uma quantidade de processos desse tamanho é inconcebível numa Corte cujo objetivo principal é examinar a compatibilidade das leis e atos normativos com a Constituição (controle de constitucionalidade das leis). O mensalão decorreu do foro por prerrogativa de função, algo excepcional. Nos EUA, são cerca de 110 casos por ano. É pouquíssimo para uma Constituição sintética, que não diz quase nada além do estritamente essencial, o que levaria a Corte a construir uma Constituição judicialmente, para suprir-lhe as lacunas, face ao desenvolvimento do direito desde a sua promulgação.
No Brasil – a opinião é pessoal – achamos que esse número exagerado de discussões de fundo constitucional deve-se a fato contrariamente simétrico. Nossa Constituição em vez de sintética é analítica e, por isso, extensa em demasia. Nós, em 1988, na esteira da redemocratização do país, optamos por constitucionalizar quase tudo: meio ambiente, índios, o desporto, direito civil, penal, eleitoral, comercial, trabalhista, econômico, tributário sobretudo, e assim por diante. A Constituição tornou-se um super, código abrangendo todos os assuntos de interesse das pessoas e da sociedade. O resultado foi o congestionamento absoluto da Suprema Corte, com apenas 11 ministros.
Outro motivo vem da sistemática postura demandista das pessoas jurídicas de Direito Público (União, estados e municípios, suas autarquias e empresas públicas). De um lado não cumprem as leis, de outro empanturram o Poder Judiciário com as suas pretensões e cobranças nem sempre cabíveis. Para ter uma ideia, 80% das questões judiciais discutidas nos tribunais superiores – e muitas desaguam no STF – ostentam a União e suas instrumentalidades, como o INSS, os estados, mormente o de São Paulo, e os municípios, como réus, autores, opoentes ou assistentes.
É preciso dar um fim a essa situação. Mesmo sem razão as pessoas de direito público discutem sem cessar, usando todos os recursos possíveis, para ganhar tempo, deixando a sociedade inerme, sem segurança jurídica. Perguntam-nos a razão de não entrar no rol das reformas estruturais do país a reforma judicial, de uma importância tão grande ou maior do que a política, a do Estado, dos partidos e da economia, que deve ser da iniciativa privada em um Estado regulatório tão somente.
Foi exatamente para enfrentar o caos judiciário que a doutrina dos tribunais deu de criar instrumentos de simplificação. Um deles é a súmula vinculante, outra essa questão da repercussão geral. Decidido um são decididos milhares de casos iguais. Tem um porém. Isso tem de ser rapidamente feito, pois vimos que provoca a chamada paralisia judicante. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cuja função é dar unidade ao direito infraconstitucional, inventou-se também a técnica dos recursos repetitivos. Decide-se um, decidem-se todos, coisa parecida com a repercussão geral.
Há nisso um risco, pois basta o STF dizer que dado caso é de repercussão geral para que os tribunais inferiores e juízes monocráticos paralisem milhares de processos, que nem sempre são iguais, a ponto de nos externuarmos, os advogados, na demonstração dos “distinguos”, isto é, para convencê-los de que os casos são distintos. Urge melhor regulamentar essas matérias ou será o caos.
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