Aceitar as diversidades naturais não é relativismo moral;
O contrário disso é que tem nome: ódio e intolerância
O papa Francisco, de tocante humildade, tem a simplicidade do religioso cujo nome adotou. Mas crê no diabo. O tema desmereceria comentários não fosse o contexto em que o papa o inseriu. Referindo-se aos homossexuais, disse que a união civil, o casamento, ou qualquer outro nome que se quisesse dar à comunhão afetiva, econômica e social entre eles era obra do “Senhor da Mentira”. Com isso, atribuiu ao demônio a união homossexual, dando realce ao pensamento religioso maniqueísta (que reduz o homem e o universo à eterna luta entre o bem e o mal).
Incapaz de explicar a violência e o conflito, o politeísmo debitava a deuses bons e maus os fatos bons e maus no plano da vida humana. No monoteísmo, em que Deus tem que ser necessariamente o único e supremo poder, a suma onisciência e o máximo amor, torna-se inexplicável um outro poder contraposto e ativo, capaz de desandar a criação inteira logo após os laboriosos dias de trabalho do criador de todas as coisas, como atesta a Torá judaica, transformando desde então a vida humana num rosário de misérias. Os gregos cultos diziam: Deus para sê-lo tinha que ser além de incriado e eterno, o único e supremo poder, o único e supremo bem (amor), a única e suprema onisciência (saber tudo, antes, em toda parte), impedindo, por absoluta incompatibilidade, qualquer outro poder e vontade no universo. E arrematavam: se Deus não elimina o mal porque não pode, não é o supremo poder; se não o faz porque não quer, não é a suprema bondade e amor; se não o faz por não saber, não é a suprema onisciência (e sabedoria). Esse Deus, diziam, ou não existe ou é “imperfeito-em-si-mesmo”, impossível pelo princípio da não contradição.
Para muitos foi um erro das escrituras cristãs ter absorvido o Velho Testamento, Javé não tem nada em comum com Jesus. (Ver: Cristo, uma crise na vida de Deus, do jesuíta Jack Miles). O problema do mal pode ter outras leituras. Somos obrigados a matar outras espécies animais e vegetais para sobreviver e perpetuar a espécie. A luta pela vida exigiu competição e violência entre indivíduos, tribos e nações. A evolução nos dotou de inteligência e reflexão para resolver problemas práticos e pensar o real, aumentando nossa potência para o bem e para o mal, como reconheceu o jesuíta Teilhard de Chardin (O fenômeno humano). Da maldade humana cuida o direito desde os primórdios. (Os males da natureza, esses são inevitáveis. Rezar para chover ou não é ignorância). O cristão Pascal percebeu o paradoxo: “Temos que ser culpados para Deus ser inocente” (responsabilidade pelo mal).
A mesma intuição tiveram os caldeus, pais de todos os povos semitas. No princípio, o Altíssimo criou todos os deuses. Um deles rebelou-se e tornou-se o “Senhor do Mal” (o anjo decaído). Por ordem sua, a deusa serpentina Tiamat decretou o dilúvio, mas Deus nos salvou. Nos mitos semitas posteriores ela reaparece como “cobra falante” e induz Eva – culpabilizando a mulher – a comer com Adão o fruto proibido, condenando a humanidade futura àquela altura inexistente ao sofrimento, ao mal, à violência e à morte. A função dos mitos é explicar pelo lado numinoso e fantástico as realidades da vida e da história. Mas pode a pena passar da pessoa do infrator? O papel do diabo em nossa perdição é fatal. Seu poder mudou a história. E permanece?
Lado outro, na ordem da natureza, a sexualidade não nos é dada univocamente. Platão, com a sábia naturalidade de quem observava o mundo com aguda inteligência, considerou cinco modos de comportamento sexual, a partir de três modelos universais: o heterossexual, o homossexual e o bissexual. Os gregos antigos não viam a sexualidade como objeto de juízos morais (bons ou maus), mas como veículo reprodutor e prazer, o contrário da dor, sequer nefasta a instituição familial, pelo contrário. As religiões patriarcais, o judaísmo-tronco e suas ramagens cristãs e islâmicas, se intrometeram demais na sexualidade (legalismo familial). O catolicismo levou o assunto ao paroxismo.
Ninguém é “tentado pelo diabo” a ser ou não ser; ninguém “opta” por ser isso ou aquilo. As pessoas já nascem predispostas, em maior ou menor grau, à sexualidade que haverão de ter por força da natureza, obra de Deus. Ao meu sentir, refoge à alçada das religiões, reveladas ou não, regrar relações interpessoais íntimas, a exigir soluções advindas das leis civis, com os seus efeitos sobre direitos à propriedade, herança, afetividade etc. Quanto maior o absolutismo das religiões, maiores os conflitos com as complexas sociedades da era moderna. O próprio da religiosidade é falar ao coração das pessoas, realçando o amor, a dádiva, a solidariedade e a compaixão, independentemente da sexualidade, cor, raça, classe social ou gênero. Aceitar as diversidades naturais não é relativismo moral. O contrário disso é que tem nome: fundamentalismo religioso, ódio e intolerância.
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