Sem ter liga de futebol, nem experiência no ramo, o pequeno Qatar foi escolhido para sediar a Copa do Mundo de 2022. Terá sido tudo bem calculado, ninguém duvida.
Em 2 de dezembro de 2010, um pequeno país, de 150 quilômetros de cumprimento por 75 de largura, na beira Leste do Golfo Pérsico, na península arábica, é designado para sediar a Copa do Mundo de 2022, sem ter liga de futebol, nem experiência no ramo. É mais um passo do sheik Hamad Bin Khalifa Al Thani, na sua busca incessante pelos tesouros do mundo. Terá sido tudo bem calculado, ninguém duvida. Quanto os dirigentes da Fifa receberam é um mistério, mas os feitos do Qatar são bem conhecidos. Mozah, mulher do Emir, é conhecida por sua modernidade e inteligência. Não esconde o belo rosto. A população é de 1,7 milhão de pessoas, sendo que apenas 225 mil são nacionais. Os demais são trabalhadores estrangeiros e imigrantes. A renda per capita é escandalosa: 131,1 mil euros, a maior do mundo.
O país é o terceiro produtor mundial de gás natural, possui as maiores reservas submarinas do planeta (partilhadas com o Irã) e é o primeiro exportador de gás liquefeito (o que permite transportá-lo em navios), além de possuir petróleo, gasodutos e oleodutos. Ao contrário dos temidos waabitas da Arábia Saudita, que não permitem às mulheres mostrarem-se nem dirigir automóveis, e dos talibãs do Afeganistão, que proíbem as mulheres de estudar, a educação no Emirado é universal. Entre a população estudantil o percentual feminino é de 77%. A educação liberta. Porém, o passo mais audacioso da família real foi a criação do canal televisivo por satélite Al Jazeera, em 1996, que vai ao ar em Doha, a capital, considerada a CNN do mundo árabe – pela excelência da programação –, com transmissões também em inglês, a permitir ao mundo ocidental acesso aos pontos de vista do universo islâmico.
Incrustado entre a waabita e ultraconservadora Arábia Saudita, avizinhada do Bahren, uma ilha à beira de seu território, tendo ao norte o Irã xiita e radical, a diplomacia do Qatar mantém relações com regimes tão opostos como os desse vizinhos, especialemente, Arábia Saudita e Irã. Por via das dúvidas, celebrou com os EUA um tratado de defesa em troca de uma base aérea, resguardada a soberania do Qatar. Ao cabo, a Al Jazeera ora agrada ora desagrada a gregos e troianos, sem falar que a 300 quilômetros a Leste está o Estreito de Omã, por onde passam seus navios.
Outro feito do Emir foi a criação da Qatar Investment Authority (QIA). Um analista britânico diz: “No mundo inteiro, o Qatar investe em projetos de infraestrutura e energéticos inteligentes, nada de hotéis e cassinos”. Recentemente fez, mas somente no Brasil, parceria com o Banco Santander e na Europa com a Porsche. Doha acolhe o festival de arte cinematográfica de Robert de Niro, conhecido por Tribeca-Doha, e o chamado TEDx (rede mundial de conferências sobre ciência, inovação e artes). Ora, tudo isso torna o Emirado cosmopolita na península árabe onde Meca é a Roma do mundo islâmico.
Os fundos soberanos do Qatar são do Estado, sob direção profissional. Talvez isso explique não haver democracia no Emirado, em vista da sua excelência econômica. Um príncipe esclarecido para tirar Maquiavel do olvido, vale por três eleições (Alguns dados foram obtidos no Courrier International nº 1093, de 13 a 19 de outubro de 2011, França).
Eu estava redigindo o artigo quando Bianor observou as imensas discrepâncias de renda entre os países árabes e para lá da base étnica entre os países muçulmanos, em geral. Ora, o cristianismo, o catolicismo, o protestantismo no mundo ocidental, jamais evitaram guerras e desigualdades, nem obstaram que países germânicos ou latinos, com idênticas religiões, se guerreassem. O que importa, no caso, é o papel revolucionariamente contido de o Qatar influenciar o evolver do mundo árabe no sentido da modernidade. O Ocidente conseguiu suplantar o poder religioso e implantar sociedades laicas. Agora é a vez do complicado mundo islâmico.
É curioso e até obrigatório notar que o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, formam a tradição religiosa abraâmica. São as únicas religiões no mundo que dizem ter sido os seus preceitos revelados por Deus e, o que é mais, pelo mesmo Deus, o conhecido Javé e seus porta-vozes: Moisés, Jesus, ele próprio como Javé encarnado e Maomé. Daí a divisão clássica na sociologia das religiões entre as reveladas e as não reveladas (janismo, xintoísmo, o budismo do pequeno ou grande carro, zen-budismo, taoísmo). A sociologia das religiões é uma disciplina importante. As identidades são maiores que as diversidades. Exemplifique-se com o fenômeno apotropaico (oferecer sacrifícios, preces, adorações às deidades). Para quê? Controlar o controlador (a morte, as guerras, as tempestades, as colheitas, as doenças, só para ilustrar). Na medida em que as divisões religiosas e políticas diminuem, o homem vê o outro como seu próximo.
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