Fenômeno do mundo da cultura, o direito está, inegavelmente, enraizado no social. Contudo, embora o discipline, paradoxalmente é um seu reflexo. Isso porque é radicalmente instrumental.
Baleeiro, enfático, fazia-nos recordar que onde quer que se erguesse um poder político, quase que como a sua sombra aparecia o poder de tributar.
Em tempos recuados e até bem pouco – há cerca de três séculos apenas –,o jus tributandi e o jus puniendi eram atributos do poder sem peias dos governantes. Muito poder e abuso e pouca justiça. De lá para cá, o poder foi sendo limitado. Os princípios impostos, progressivamente, pela axiologia do justo, foram se incorporando aos sistemas jurídicos: capacidade contributiva, como fundamento para a tributação; igualdade de todos perante a lei; a lei feita por representantes do povo como único veículo para instaurar a tributação (legalidade); a descrição pormenorizada dos fatos tributáveis (tipicidade) para evitar o subjetivismo dos chefes fiscais e para garantir a certeza e a segurança dos contribuintes; a proibição do confisco por meio da tributação; a absoluta irretroatividade das leis fiscais e da jurisprudência tributária e assim por diante.
O direito, portanto, faz parte do estofo da história, é história. É, igualmente, um produto social. Robinson Crusoé, na sua ilha, sem Sexta-Feira, desnecessitaria do direito por falta de intersubjetividade. Não obstante, o direito é cultura, na medida em que é produzido pela psique do homem e para os homens. Os deuses pairam acima das leis. O direito não tem nada de natural ou divino, não provém da revelação, embora possa proteger valores naturais caros ao homem, como a vida. Procede da consciência humana e realiza os valores que emergem do social, buscando formalização e efetividade. Nesse sentido, é um produto cultural, essencialmente cultural.
Vejamos as coisas com mais vagar, juntando o fenômeno jurídico ao fenômeno humano na aventura da história.
A primeira coisa que o homem faz, juntamente com os seus semelhantes, é produzir para viver. Produzindo, convivem. O modo de conviver vai depender, então, do modo como produzem. Não são, ou foram, as sociedades “caçadoras”, diversas das sociedades “pastoras” no modo como se estruturaram?
Ao produzirem para viver, os homens usam instrumentos, aplicam conhecimentos, inventam técnicas, agregam experiências que, em última análise, decidem sobre o tipo de relações que haverão de manter entre si. O homem é, antes de tudo, um ser de necessidades ou homo necessitudinis. Para satisfazer suas necessidades básicas, sempre presentes, sempre prementes, tem que agir, isto é, trabalhar. Eis o homo faber. Destarte, para satisfazer suas necessidades, o homem “trabalha” a natureza, humanizando-a. Catando frutos, caçando, pescando, plantando, domesticando animais, minerando ou transformando metais, industrializando as matérias-primas ou comerciando, o homo faber arranca da natureza sustento para a sobrevivência com o “suor do rosto”. Ao trabalhar, constrói a si próprio, sobrevive. A história nada mais é do que a história do homem e de seu fazer pelos tempos adentro. Seria impossível entendê-la, e as sociedades que sucessivamente engendrou, sem referi-las fundamentalmente às relações de produção, que o modo de produzir dos homens em cada época e de cada lugar tornou plausíveis. As relações sociais, econômicas e culturais da sociedade primitiva, da sociedade grega, romana, árabe ou visigótica, da sociedade medieval, da sociedade capitalista, foram condicionadas por diferentes estruturas de produção. Ora, todas essas sociedades, como de resto todas as comunidades humanas, atuais e pretéritas, foram e são articuladas juridicamente.
Fenômeno do mundo da cultura, o direito está, inegavelmente, enraizado no social. Contudo, embora o discipline, paradoxalmente é um seu reflexo. Isso porque é radicalmente instrumental. Mas o fenômeno jurídico não se reduz ao puro instrumento normativo.
Da vida em sociedade brota o direito. Ex facto oritur jus. O “ser” e o “outro”, convivendo, realçam o social, e, por certo, do fato social projetam-se interesses, carências e aspirações a suscitar regulação. Daí valores. E são eles que fecundam o direito. Se o direito é dever-ser, é dever-ser de algo, já o disse Vilanova, o recifense, como a sublinhar que o axiológico não paira no ar, desvinculado da concretitude da vida. Os valores não são entes etéreos ou coleção de imperativos morais, imutáveis e intangíveis, tais quais essências sacrossantas. Não são supra-humanos e nem nos chegam ab extra. Projetam-se do homem na-história, do homem concreto, de um estar-aí-no-mundo-com-os-outros. Das necessidades às aspirações e, daí, às normas. Assim, se o direito está na norma, por certo brotou do espaço cultural de cada povo com as suas aspirações e os seus valores, epifenômenos da experiência social, nucleada à volta do processo de reprodução da vida humana.
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