Os historiadores do direito ou os arqueólogos jurídicos dizem que em Roma houve um tempo em que não se distinguia a Lex (Lei dos homens) da Fas (Lei divina)
Nas sociedades mais antigas, os sumos sacerdotes, quase sempre, como ocorreu, inclusive, com os papas, empolgaram o poder político. Estado e religião viviam amalgamados. Os preceitos morais estavam embutidos nos mandamentos da religião, que, frequentemente, continham códigos jurídicos. Os Dez Mandamentos, com o “não matarás”, “não roubarás”, “não desejarás a mulher do próximo”, já não são codificação jurídica? O “honrarás pai e mãe” denota a indução da moral utilitária. Entre os humanos “prestantes”, é preciso cuidar e venerar os velhos “imprestáveis”. Onde falha o amor solidário reentra o dever moral. Confúcio fez da veneração aos idosos o pilar da moral chinesa clássica.
Os historiadores do direito ou os arqueólogos jurídicos dizem que em Roma houve um tempo em que não se distinguia a Lex (Lei dos homens) da Fas (Lei divina). Sófocles, na peça teatral Antígona, a seu turno, mostra o conflito entre preceitos religiosos e normas jurídicas antinaturais. A separação entre a Igreja e o Estado (o Estado laico) é recente. É mais recente ainda a renúncia das igrejas em exercer o poder temporal. O catolicismo da inquisição era poder político na real acepção do termo. E, até hoje, os aiatolás islâmicos pensam governar em nome de Deus, aplicando os mandamentos do Corão em lugar dos códigos laicos. De qualquer modo, a religião atua a partir de sanções prometidas após a morte.
O direito é mais prático. A sanção dá-se aqui, agora. Tira-se a vida, a liberdade, os direitos, o dinheiro dos infratores que desobedeceram as suas prescrições. O direito tampouco se preocupa com os dramas de consciência. As intenções, em si, são irrelevantes, pois o que lhes interessa, verdadeiramente, são as condutas humanas, as prescritas e as proibidas. O direito descreve condutas e prescreve os efeitos que delas podem advir. Faz isso o tempo todo, em todos os tempos. Planifica instituições e comportamentos humanos, regendo o convívio social.
Freud, com a sua notável intuição em compreender o homem como id (o homem que busca prazer e satisfação a partir dos impulsos de sua estrutura biopsíquica) e como ego (o homem educado que concilia os impulsos com as conveniências comportamentais que lhe foram introjetadas pela educação familiar, moral e religiosa — superego), penetrou profundamente na alma humana, tão machucada pelos quereres do corpo e pelas proibições sociais, morais e religiosas. Pode até ter desnudado a hipocrisia moral, iniciando a análise do inconsciente humano, e se apiedado do homem, colhido nas malhas das organizações sociais repressoras, mas não alterou em nada o direito, impassível na sua eterna missão de planejar e punir comportamentos. De resto, foi um discípulo de Freud, ademais filósofo e sociólogo, quem mais aprofundou o antagonismo entre o homem natural e o homem social. Refiro-me a Marcuse e sua obra intitulada Eros e Civilização, em que demonstra que o processo civilizatório se faz às custas do sacrifício do homem, de todos os homens. Opõe o “princípio do prazer” (em si bom) ao “princípio da realidade” (em si necessário ao processo civilizatório). Civilizar é reprimir.
Da vida em sociedade brota o direito. Ex facto oritur jus. O “ser” e o “outro”, convivendo, realçam o social, e, por certo, do fato social projetam-se interesses, carências e aspirações a suscitar regulação. Daí valores. E são eles que fecundam o direito. Se o direito é dever-ser, é dever-ser de algo, já o disse Vilanova, o recifense, como a sublinhar que o axiológico não paira no ar, desvinculado da concretude e da vida. Os valores não são entes etéreos ou coleção de imperativos morais, imutáveis e intangíveis, tais quais essências sacrossantas. Não são supra-humanos nem nos chegam ab extra. Projetam-se do homem na história, do homem concreto, de um “estar aí no mundo com os outros”. Das necessidades às aspirações e, daí, às normas. Assim, se o direito está na norma, por certo brotou do espaço cultural de cada povo com as suas aspirações e os seus valores, epifenômenos da experiência social, nucleada à volta do processo de reprodução da vida humana.
Ocorre que os critérios e valores que informam historicamente a construção das legalidades vigentes trazem a marca dos interesses concretos, até mesmo conflitantes, que do fundo mais profundo da sociedade emergem à luz colimando formalização e juridicidade. Trata-se então de dar forma, eficácia e vigência a prescrições que se reputam certas e necessárias à convivência humana e à ordem pública. Tudo isso é feito por meio de instituições que repassam para a ordem jurídica os conflitos de interesses existentes no meio social.
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