O governo, num país democrático, submetido ele próprio às leis, não pode fazer o que quiser com as contas públicas.
Volto, um tanto quanto nostálgico, aos bancos da universidade, a estudar direito financeiro e tributário, ramos jurídicos que depois me tornei professor titular em Minas Gerais e no Rio. Vejo-me lendo Bilac Pinto e Aliomar Baleeiro, autores de nomeada. Aliomar achava os tribunais de Contas, auxiliares do Poder Legislativo na fiscalização do Executivo, uma espécie de necrotério jurídico. Era neles que se abria o ventre dos governos e eram expostas as suas vísceras ao exame dos expertos, a verem se tudo estava em ordem ou se havia irregularidades tóxicas capazes de responsabilizar os gestores da coisa pública, porquanto governar é realizar ações políticas e administrar bens e serviços devidos ou pertencentes à sociedade civil.
De fato, o exame a posteriori das contas deixa a desejar, mas é o sistema que sempre adotamos em nossas constituições. E temos também ouvidorias e auditorias internas, estas últimas atuando em tempo real, in loco. Digo isso pois Baleeiro, parlamentar, político, professor, escritor de grande erudição e, posteriormente, ministro da Suprema Corte, era adepto do chamado “modelo inglês”. O lord chanceller das contas daquele país, cujo direito é solidificado por precedentes judiciais (“judge made law” ou o juiz é que “faz” o direito), comandava, em verdade, não um corpo de afiados analistas de contas já incorridas, como nós, mas um exército civil de contadores e auditores.
Dizia ele: ninguém saberia de antemão aonde iria o lord inglês, fiscalizador das contas do governo. Um enorme cortejo de carros pretos apinhados de auditores serpenteava pelas ruas curvilíneas de Londres. De repente, o bastão do lord apontava a direção da missão que bem poderia ser o Ministério das Relações Exteriores ou a sede do Almirantado. Todos desembarcavam e as contas passavam a ser examinadas in fieri, ou seja, ainda “quentes”.
Seja lá como for, o governo, num país democrático, submetido ele próprio às leis, não pode fazer o que quiser com as contas governamentais regidas pelo orçamento público votado pelo Parlamento.
Razão assiste ao comentarista político Baptista Chagas de Almeida, no Estado de Minas de 18/6/15: “Dias difíceis enfrenta a presidente Dilma Rousseff. Não bastasse a questão da aposentadoria, está diante de uma incômoda situação, aliás, inédita (…) de acordo com o relator Augusto Nardes, R$ 37 bilhões foram escamoteados da contabilidade oficial (…). Desde 2002, o Congresso não aprecia contas da Presidência da República. A última foi na gestão de 2001 de Fernando Henrique Cardoso.”
Depois disso, como não louvar a liberdade de imprensa, a esclarecer o povo e a nação?
Julgando as contas de Dilma de 2014, ano eleitoral, o TCU deu-lhe 30 dias para explicar omissão de passivos da União junto ao Banco do Brasil, ao BNDES e ao FGTS nas estatísticas da dívida pública de 2014; adiantamentos concedidos pela Caixa Econômica Federal (CEF) à União para despesas dos programas Bolsa-Família, seguro-desemprego e abono salarial nos exercícios de 2013 e 2014; adiantamentos concedidos pelo FGTS à União para despesas do Programa “Minha Casa, Minha Vida” nos exercícios de 2010 a 2014; adiantamentos concedidos pelo BNDES à União para despesas do Programa de Sustentação do Investimento (PSI) nos exercícios de 2010 a 2014; ausência do rol de prioridades da administração pública federal, com suas respectivas metas, no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2014; execução de despesa com pagamento de dívida contratual junto ao FGTS sem a devida autorização orçamentária no exercício de 2014; extrapolação do montante de recursos aprovados, no Orçamento de Investimento, para a fonte de financiamento; execução de despesa sem suficiente dotação no Orçamento de Investimento pelas empresas Araucária Nitrogenados S.A., Energética Camaçari Muricy I S.A. (ECM I) e Transmissora Sul Litorânea de Energia S.A. (TSLE); ausência de contingenciamento de despesas discricionárias no montante de pelo menos R$ 28,54 bilhões, quando da edição do Decreto 8.367/2014; utilização da execução orçamentária de 2014 para influir na apreciação legislativa do Projeto de Lei 36/2014, de alteração da LDO; inscrição irregular em restos a pagar de R$ 1,367 bilhão referentes a despesas do programa “Minha Casa, Minha Vida” no exercício de 2014; omissão de transações primárias deficitárias da União junto ao Banco do Brasil, ao BNDES e ao FGTS nas estatísticas dos resultados fiscais de 2014; existência de distorções em parte significativa das informações sobre indicadores e metas previstos no Plano Plurianual 2012-2015.
O presidente do TCU, Augusto Nardes, disse: “Estamos inaugurando um novo tempo de não mais aprovar as contas com ressalvas. Para lutar contra a corrupção, temos de ter boa governança”.
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