Como ocorreu há 200 anos na Inglaterra, há problemas. O capitalismo faz progredir, mas é inçado de crises cíclicas ou sistêmicas.
Estou relembrando a conversa que tive em 2003, em Xangai, com um casal de brasileiros, profundos conhecedores da China. Vaticinaram que ela seria a “fábrica do mundo” e depois de todos os produtores estarem lá dificilmente sairiam, pois em nenhum lugar conseguiriam produzir tanto, com qualidade, baixo custo fiscal, trabalhista, previdenciário e logístico. Dito e acontecido.
O The Wall Street Journal (para as Américas) vem corroborar os vaticínios daquele brilhante casal de analistas, os mais antigos cidadãos do mundo, pela ascendência judaica. Em suma, pontifica o jornal de negócios, cujo nome é curioso: o jornal da rua do muro. A questão é que o muro hoje é outro e fala mandarim (80%) e cantonês (20%). Eis a China ou o Império do Meio.
A China, que já foi a fonte mais confiável do crescimento global, está contribuindo para a deflação em todo o planeta. Nos seringais do Sudeste Asiático, o preço do látex mantém os clientes chineses felizes. Nos Estados Unidos, os distribuidores de pneus estão rebaixando os preços e alguns demitindo funcionários, à medida que a China inunda o país com produtos baratos produzidos por fábricas em excesso. “A capacidade de produção da China mudou a indústria dos EUA”, diz Brian Grant, diretor-presidente da Del-Nat Tire Corp., distribuidora americana de pneus que fechou no início do ano, abatida por prejuízos provocados pelo acúmulo de estoques caros, comprados antes de os preços caírem.
Há 10 anos, a mão de obra barata de trabalhadores vindos do campo inundou as fábricas chinesas e derrubou o custo de tudo. Depois, a crescente demanda do país por commodities ajudou a reverter a tendência global de queda na inflação com aumento dos preços das matérias-primas. Agora, o excesso de capacidade industrial e o crescimento voltam a pressionar os preços para baixo.
Os fabricantes chineses estão elevando as exportações de bens como pneus e painéis solares para compensar o excesso de oferta no mercado interno. As pressões deflacionárias vindas da China são sintomáticas de problemas mais amplos de demanda que afetam economias da América do Sul, Europa e boa parte da Ásia. A China não é a única causa da queda dos preços; as novas fontes de petróleo na América do Norte e o fraco crescimento na Europa também colaboram. Mas o tamanho e o papel central da China na produção global tornam o país potente.
O Departamento de Trabalho dos EUA informou que os preços de todos os bens importados pelo país diretamente da China caíram em 20 dos últimos 38 meses, num total de 2,2%. Para os consumidores a notícia é boa, mas os preços em queda representam um desafio real. Os declínios podem reduzir a lucratividade, impedir investimentos e o aumento dos salários para tirar o mundo de um período de crescimento desapontador.
O papel da China no enfraquecimento dos preços nos mercados mundiais está cada vez mais aparente à medida que o país luta para absorver toda a capacidade industrial que criou. Os preços industriais estão caindo há mais de três anos, pressionando o banco central do país a facilitar o crédito e reduzir o custo dos empréstimos para tentar impulsionar o consumo interno. Em 2014, a China exportou 94 milhões de toneladas de aço, mais que a produção total de grandes produtores como EUA, Índia e Coreia do Sul. Analistas do UBS preveem que o excesso de capacidade de produção de aço chegará a 553 milhões de toneladas ao ano, a maior parte na China, suficiente para construir mais de 10 mil aeronaves ou 75 mil torres Eiffel.
Mas a China não pode redobrar sem parar sua capacidade exportadora com preços baixos em um mundo em crise. Os salários devem crescer, sem o que não haverá demanda doméstica (população equivalente à da Europa e das três Américas juntas). Conquanto os preços do petróleo abundante estejam lá embaixo, os chineses estão substituindo-o e o carvão mais velozmente que os alemães (55% dos painéis solares do mundo estão lá) e a energia eólica virou obsessão. Há uma razão para isso: o custo da energia que move tudo, desde as indústrias até as casinhas das remotas aldeias (cada vez mais raras). A quarta revolução industrial começou bem distante de Londres, na milenar China. Como aconteceu há 200 anos na Inglaterra, há problemas. A classe média ascendente, à falta de uma especulação imobiliária “made in USA”, fez a bolsa de Xangai subir 128% em 10 meses e perder 32% em 20 dias. A crise foi debelada pela ação firme do BC chinês e pelo governo unipartidário. Foi um grito de alerta. O capitalismo faz progredir, mas é inçado de crises cíclicas ou sistêmicas. Certamente é um desafio administrar 1 bilhão e 350 milhões de pessoas (PIB de US$ 11 trilhões).
Até quando durará o ciclo histórico do papel-moeda? Para Marx, seria quando tudo fosse de todos, uma miragem esvanecida. Para os religiosos, só depois do fim do mundo, noutra dimensão, na almejada parusia.
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