A perversão é grande quando a ditadura se respalda em votos e apresenta-se liberal; a aspiração maior é governar sem contraste, nem fiscalização
Todo governo autoritário não enxerga adversários, mas inimigos e dispõe de serviços secretos bem aparelhados: fototecas, sósias, páginas antigas de jornais, de modo a corroborar — sempre com ares patrióticos e aparência da verdade — suas mentiras contumazes. O devido processo legal (due processo of law) sob controle e possibilidade de verificação da prova, sua veracidade e significados, é escamoteado. Então, aparecem as mensagens, as encardidas páginas de jornais, de modo a conferir ares de verdade ao falar do ditador, cuja aspiração maior é governar sem contraste, nem fiscalização.
Processo com tais características está ocorrendo neste exato momento no Brasil e está cada vez mais se aperfeiçoando, em favor do “bolsonarismo”, sem que se possa questionar a veracidade das “entrevistas”, “depoimentos” e “imagens”. A rapidez quase nazista com que esses serviços secretos atuam convencem a população e impulsionam, portanto, o crescimento da credibilidade do governo e do presidente, cujo projeto de poder ultrapassa uma única reeleição. Antes jurou um só mandato. Agora mudou a toada.
A perversão é grande quando a ditadura se respalda em votos e apresenta-se liberal. Hitler era assim também: homofóbico, patriota, anticomunista e chegou ao poder com apoio popular. Em certas ocasiões, em certos lugares, a democracia traz em si o germe da sua autodestruição. Depende da manipulação da população e do apelo ao patriotismo do mandante supremo à sociedade civil.
Este caso do presidente da OAB e do presidente da República ainda vai render um grande “disse me disse”, cenas montadas e supostas páginas de “antigos jornais”, perícias e tudo o mais, para confundir a opinião pública. As redes sociais estão atuando como nunca. Mas a turma do governo está fazendo verdadeira blitz. Outro caso é o relativo ao desmatamento da Amazônia. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), reconhecido internacionalmente, é desmentido pelo presidente, que é desmentido por órgãos científicos do Brasil e até dos Estados Unidos.
Após o golpe militar de 1964, manteve-se uma aparência de democracia indireta, com os presidentes e governadores sendo eleitos indiretamente pelo Poder Legislativo, seja o Congresso Nacional, sejam as Assembleias Legislativas Estaduais. Porém, a partir dos Atos Institucionais de 1968, o confronto entre o governo dos presidentes militares (Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel, e João Figueiredo) e a ditadura se escancarou e seus atos não vinham tanto a público ante a nação temerosa das Forças Armadas e do Serviço Nacional de Informações (SNI). Foi nessa época conturbada que ocorreu o “desaparecimento” do pai do presidente atual da OAB, na época jovem militante dos católicos de esquerda (AP).
Em tempos que tais nunca se tem certeza de nada, como no caso Herzog, outro entre muitos outros acontecidos na noite escura da ditadura, a qual tinha também seus conflitos internos sobre que rumo tomar. Lembro-me que fiz o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (sou tenente da Reserva, se convocado), sob as ordens do general Sílvio Frota, no Forte de São Joaquim. Mais tarde como ministro da Guerra, viria a protagonizar um embate com o general Ernesto Geisel — que insinuava a volta paulatina à democracia plena (e não fingida).
A resistência das correntes militares que se opunham à “abertura política” lenta e gradual tinha no ministro-chefe das Forças Armadas o seu maior esteio, ou seja, o general Silvio Frota, meu ex-comandante no CPOR. O presidente norteamericano Carter insistia que a América do Sul voltasse a praticar o regime democrático. Aliás, foi com o apoio americano que os países do continente se tornaram “ditaduras militares” anticomunistas, no contexto da Guerra Fria. Chile, Peru, Argentina, Uruguai, Brasil, entre outros, viveram sob regimes militares favoráveis aos EUA, porém com traços ditatoriais fortíssimos, que nenhum historiador sério se dispõe a negar. Depois os EUA, com Carter, fez-nos optar pela democracia.
Pois bem, foi durante esse período que ocorreram os casos Santa Cruz e Herzog, entre outros, quando o governo podia tudo (como agora o governo que tem viés militarista, pode forjar provas e omitir fatos). Foram 21 anos o tempo que durou em nosso país a tal Revolução de 1964, o regime dos generais. Entretanto, não acredito que nos tempos atuais, apesar do temperamento violento do nosso presidente, volte o país a uma ditadura. Bolsonaro — apesar dos pesares — não tem alma de ditador por maior que seja o seu amadorismo. É mais uma questão de temperamento.
A questão preocupante é que incentiva, com ser autoritário, bravo, polemista, o funcionamento do Estado, respaldando em certos centros militares e civis atitudes e ordens bruscas, nem sempre bem meditadas, sobressaltando a nação. “Ideologismo” é outra praga de governos autoritários e sectários. Veja-se o caso da China, o nosso maior parceiro comercial, até agora ignorada, enquanto Trump é paparicado.
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