Sacha Calmon
Advogado, coordenador da especialização em direito tributário da Faculdades Milton Campos, ex-professor titular da UFMG e UFRJ
Dez anos atrás, tal relacionamento parecia improvável: China e Rússia eram tanto concorrentes como parceiras
Gideon Rachman, do Financial Times, nos informa: “A lança ocidental vem ameaçando o Kremlin com sanções ‘avassaladoras’ e ‘sem precedentes’ se a Rússia atacar a Ucrânia”. Mas, num momento em que a crise da Ucrânia entra no ponto de ebulição, os esforços ocidentais para isolar e punir a Rússia tendem a ser minados pelo apoio da China – a descomunal vizinha da Rússia.
Quando Vladimir Putin viajou para Pequim, para a abertura da Olimpíada de Inverno, o presidente russo se reuniu com o líder que se tornou seu aliado mais importante: Xi Jinping, da China. Um telefonema entre Putin e Xi em dezembro, o líder chinês apoiou a exigência da Rússia de que a Ucrânia jamais se torne membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan, a aliança militar ocidental).
Dez anos atrás, tal relacionamento parecia improvável: China e Rússia eram tanto concorrentes como parceiras. Mas, após um período de persistentes disputas de ambos com os EUA, o respaldo de Xi a Putin reflete urna crescente identificação entre os interesses e visões de mundo de Moscou e Pequim. Segundo a mídia chinesa, Xi disse a Putin que “determinadas forças internacionais estão interferindo arbitrariamente nos assuntos internos de China e Rússia, a pretexto (de defender a) democracia e os direitos humanos”.
Como deixaram claras as observações feitas por Xi a Putin, os líderes russo e chinês estão unidos pela convicção de que os EUA estão empenhados em levar a cabo um complô destinado a solapar e derrubar seus governos. No auge do período comunista, a Rússia e a China apoiaram forças revolucionárias no mundo inteiro. Mas agora, Moscou e Pequim abraçaram a retórica da contrarrevolução. Recentemente, quando irrompeu a agitação no Cazaquistão, Putin acusou os EUA de tentarem patrocinar uma “revolução colorida” – expressão que designa movimentos de protesto que pretendem mudar o governo – em um país que tem fronteiras com a Rússia e a China. Altos ministros chineses corroboraram essas observações.
Aos olhos de Rússia e China, a revolta no Cazaquistão seguiu um padrão. O Kremlin argumenta há muito que os EUA são a mão oculta por trás da revolta da Praça Maidan, na Ucrânia, de 2013-14, na qual o presidente pró-Rússia foi alijado do poder. A China também insiste que forças estrangeiras – leia-se, os EUA – estavam por trás dos grandes protestos de Hong Kong de 2019, que foram sufocadas pela repressão ordenada por Pequim.
Mas as ambições de Rússia e China estão longe de ser só defensivas. Putin e Xi acreditam que sua vulnerabilidade às “revoluções coloridas” advém de falhas fundamentais na atual ordem mundial: a combinação de instituições, ideias e estruturas de poder que determina o desenrolar da política global. Em decorrência disso, eles compartilham a determinação de criar uma nova ordem mundial que acomode melhor os interesses de Rússia e China – como definidos por seus líderes atuais.
Duas características da atual ordem mundial contra as quais os russos e os chineses se opõem frequentemente são a “unipolaridade” e a “universalidade”.
Fyodor Lukyanov, pensador russo de política externa muito próximo a Putin, acredita que a unipolaridade “deu aos EUA a capacidade e a possibilidade de fazer o que bem quisessem no cenário mundial”. Argumenta que a nova era da hegemonia americana foi introduzida pela Guerra do Golfo de 1991 – na qual os EUA reuniram uma coalizão mundial para expulsar as forças de Saddam Hussein do Kuweit.
A Guerra do Golfo foi seguida por uma sucessão de intervenções militares lideradas pelos EUA em todo o mundo – inclusive na Bósnia e em Kosovo, na década de 90. O bombardeio de Belgrado, a capital da Servia, pela Otan, em 1999, é parte do argumento da Rússia de que a Otan não é uma aliança puramente defensiva. O fato de as bombas da Otan terem atingido a embaixada chinesa em Belgrado não foi esquecido por Pequim.
Após os atentados terroristas de 11 de setembro em Nova York e Washington, a Otan invocou o artigo 5 – sua cláusula de defesa mútua – e invadiu o Afeganistão. Mais uma vez, de acordo com Lukyanov, os EUA demonstraram sua disposição e capacidade de “transformar o mundo pela força”.
Mas a derrota dos EUA no Afeganistão, simbolizada por sua caótica retirada de Cabul, no fim de agosto, acalentou as esperanças dos russos de que a ordem mundial encabeçada pelos EUA esteja se esfacelando. Lukyanov argumenta que a queda de Cabul nas mãos do Talibã não foi “menos histórica e simbólica do que a queda do muro de Berlim”.
O pensamento de acadêmicos chineses influentes segue linhas semelhantes. Yan Xuetong, diretor da Faculdade de Relações Internacionais da Universidade Tsinghua de Pequim (a “alma mater” de Xi), escreve que a “China acredita que sua ascensão ao status de grande potência lhe dá o direito de desempenhar um novo papel nos assuntos mundiais – um papel impossível de ser conciliado com um domínio dos EUA”, surgido após a Segunda Guerra Mundial.
Tempos diferentes virão!
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