A morte virtual do papa Bento XVI e a real do ex-presidente Chávez confirmam momento de passagem delicada
A política e a morte armam portentosas cenas, às vezes esteticamente tratadas pela dramaturgia. Pois não foi a luta pelo poder entre duas famílias o pano de fundo de Romeu e Julieta? E o dramático Hamlet? Mas essas são cenas teatrais, imaginárias, sacadas da realidade humana, matéria-prima das comédias e tragédias literárias. Entremos na história para valer. Júlio César ameaçava o regime senatorial do estado romano (Senatus populusque romanus). Mataram-no em nome das instituições, inclusive Brutus, seu amigo fraterno, a sacrificar a amizade em nome da República. Mas o discurso de despedida de Marco Antônio diante do esquife de César haveria de mudar o destino de Roma ante a sublevação popular causada por ele, brilhante orador.
Getúlio Vargas, traído por seu chefe de segurança, Gregório Fortunato, implicado na morte do coronel Vaz, seria deposto, entregando o governo conquistado nas urnas à oposição, com golpe de estado em fase final. A carta-testamento de Vargas foi uma ducha de água fria no palco político da nação e mudou o curso de nossa história. O último ato político do gaúcho positivista foi o mais significativo de todos, mas exigiu o seu suicídio: “Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história”.
No momento, estamos diante de duas mortes: a simbólica, do papa, e a real, de Chávez, ex-presidente da Venezuela, condição política assumida desde o instante constitucional em que não pôde tomar posse na data prevista, acometido de doença grave e incapacitante (tempus regitactum). O presidente do Congresso venezuelano, nos termos da Constituição feita e jurada pelo chavismo, deveria ter assumido o cargo e convocado eleições. O candidato da situação venceria facilmente. Antes de ir para Cuba, Chávez pediu publicamente que o povo elegesse Nicolás Maduro, caso algo lhe acontecesse (incapacidade ou morte). Sem nenhuma transparência, transladaram agora para Caracas o corpo de Chávez. Transladaram mesmo? Ninguém pode vê-lo, espalharam fotos cujas datas não podem ser certificadas. O que se passa na Venezuela é uma trapalhada típica do populismo atrasado, que assola parte da América Latina. No que tange a Chávez, como se fosse um zumbi, o farsesco atinge-lhe e à sua família. Tratam-no sem a mínima dignidade. A que veio trazê-lo para a Venezuela? Se for para morrer em solo pátrio e não para insondáveis disputas pelo poder será um ato condigno. A tragicomédia bolivariana continua. Aguardemos.
A morte simbólica do papa que renunciou ao seu pontificado encerra uma dramaticidade jamais vista no Estado do Vaticano, sede territorial da religião católica. A renúncia de Bento XVI escancara a crise profunda da Igreja imperial, cujo luxo e poder destoam da humildade, do ebionismo (desapego aos bens materiais) e da simplicidade de Jesus de Nazaré. Desde os tempos dos Bórgias’ não se viam os mesmos vícios com tanta visibilidade: a luta surda pelo poder, a prática de atos sexuais dentro das muralhas do Vaticano, incluindo agenciamento de encontros, escândalos financeiros, como lavagem de dinheiro e desvios de fundos do seu banco, ocultação por bispos dos atos de pedofilia dos clérigos mundo afora, a perda compreensiva de fiéis, menos nos lugares pouco esclarecidos (África subsaariana e parte da América Latina), a ausência, cada vez maior, de vocações sacerdotais, o abalo na própria fé por força de uma Igreja que repudia o casamento dos padres, insiste no celibato, inadmite o sacerdócio feminino e não evolui com a modernidade, tachando-a de relativista.
Tudo isso está no dossiê entregue aos cardeais antes do Concílio que elegerá o novo “príncipe do catolicismo”. O Espírito Santo, nos últimos 100 anos, não tem ajudado a Sé de Roma. Não posso dizer que ela não mereça tanta proteção ou porque isso está ocorrendo. O fato é que o mundo inteiro se questiona sobre os significados mais profundos da crise da religião católica apostólica romana, cuja importância no mundo ocidental é radical em ambos os sentidos, o de raiz, base, fundamento e de intransigência e intolerância.
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