O legado abraâmico está entranhado em nossa cultura.
O islã não se considera retardatário, religiosamente falando, no seio da família semítica, cujos primórdios remontam à época em que os acádios (ou caldeus) se estabeleceram na Mesopotâmia, juntando-se aos sumérios (raça tamil), à volta do sexto milênio a.C. Os caldeus formaram, com os egípcios, chineses e dasas (Índia), as primeiras civilizações no período neolítico. Foi o tempo em que os homens, saindo do nomandismo, começaram o pastoreio fixo, o plantio e a construir as primeiras cidades às margens dos grandes rios: Nilo, Eufrates, Tigre, Indo, Ganges, Brahmaputra, Mekong, Yang-tse (Rio Amarelo). Os caldeus são os protossemitas que originaram os assírios, babilônios, fenícios, cananeus, judeus etc.
A narrativa da vida de Abram é caldaica e recontada na Torá judaica. A tradição fundante do judaísmo, do cristianismo e do islamismo começa com as seitas secretas da Caldeia e a aventura de Abram na cidade de Ur, na Mesopotâmia, hoje Sul do Iraque. Por isso mesmo, a sociologia das religiões chama as três de “religiões abraâmicas”. Abram é o protótipo semita do monoteísmo abstrato, em contraposição aos deuses figurativos. As obras islâmicas atestam que o filho posto à prova foi Ismael, filho da esposa Agar, e não Isaac, filho da mulher Sarai. Ali Kamel, supervisor de produção da Rede Globo, conta-nos sobre Abram (Sobre o islã – Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2007): “No Alcorão, há um foco na infância de Abraão, ausente nos livros sagrados oficiais de judeus e cristãos, mas presente em livros judaicos não canônicos, como o Livro dos Jubileus e o Apocalipse de Abraão, do século 1 d.C.”. E arremata, recitando a Sura 3:67 do Corão: “Abraão jamais foi judeu ou cristão; foi, outrossim, monoteísta, submisso, e nunca se contou entre os idólatras”.
Em verdade, a viagem do beduíno Abram e seus animais em busca de novas pastagens retrata a imemorial colonização da região de Canaã pelos semitas cananeus, já que no litoral ficavam os entrepostos dos egípcios, hititas e egeus, dando origem a todas as tribos dos desertos e das montanhas cananeias, entre os quais os hebreus. Prestigiosos historiadores e arqueólogos israelenses corroboram essa visão histórica, como Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman (The Bible Unearthed: Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the origin of its sacred texts – 2001, trad. brasileira, Ed. Girafa – 2003). Confira-se às páginas 165/8: “Não houve êxodo em massa do Egito. Não houve uma violenta conquista de Canaã. A maioria das pessoas que formou o antigo Israel era a população local, as mesmas pessoas que vemos nas regiões montanhosas por meio das idades do Bronze e do Ferro. Os antigos israelitas eram – ironia das ironias – originalmente cananeus”. Assim, os árabes não vieram dos judeus, ambos vieram do tronco caldeu.
Qual o propósito dessa divagação? O resgate de civilizações que fazem parte do nosso passado e da história dos nossos ancestrais. Durante oito séculos, árabes, berberes do norte-africano e judeus viveram em paz, até que os cristãos lhes guerrearam e expulsaram da península ibérica, da Espanha e de Portugal. Desde então, os cristãos perseguiram os judeus, daí o verbo “judiar”. Agora, quando a efervescência jovem e modernizante de envolta com outros fatores complexos varrem o Magreb e a península arábica, o Brasil, que jamais colonizou outros povos, como fez a Europa na Ásia, África e América do Sul, deve elevar sua voz para afirmar seu compromisso inarredável com os direitos humanos, a verdadeira Bíblia do humanismo e da liberdade, e cooperar para a construção de Estados constitucionais nessa parte do mundo, consagrando a separação entre a religião e o Estado.
O legado abraâmico está entranhado em nossa cultura. Não sejamos como os Estados Unidos, cuja diplomacia vê apenas dinheiro e segurança em desfavor de seus valores e convicções, a ponto de aliar-se a tiranos monárquicos, militares corrompidos e ditadores cruéis, contanto que lhes sirvam como aliados e cúmplices. A realpolitik tem limites, sob pena de inexistir ética nas relações internacionais. A globalização terá um sentido econômico e social ou não será, mas terá uma dimensão ética ou nada será. Decerto, temos negócios na Líbia, no Egito, na Síria e noutros sítios do mundo árabe. O que não devemos, ao contrário, é subordinar os interesses do país à tirania. Tomara que o Ocidente, desta vez, não mais participe de arranjos prejudiciais aos povos da região. Passou o tempo da humilhação. A internet nos fez uma “aldeia global”. E nessa aldeia no Oriente próximo não existe guerra alguma de civilizações, pois todos são, sem exceção, herdeiros da tradição religiosa abraâmica, islamita e judaico-cristã, sem falar em Bizâncio e no legado greco-romano que regou o Oriente próximo durante mil anos.
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