Assim como na invasão do Iraque, a atual campanha para pintar o Irã como país desalmado oculta interesses econômicos e geopolíticos.
Como o juiz, o jornalista deveria buscar com afinco a imparcialidade, a isenção e a racionalidade. Nem sempre ocorre. Pelo contrário. Dois temas recorrentes estão agora mesmo sendo martelados pelas mídias. Os objetivos – deixemos de lado a ingenuidade dos simples – nunca são explicitados, mas o que se procura é a chamada pré-legitimação de ações arquitetadas. Lembram-se dos meses antecedentes à invasão do Iraque? Fizeram a cabeça dos americanos e da opinião pública ocidental sobre um cruel ditador que dispunha de armas terríveis à base de vírus e gases capazes de exterminar as pessoas massivamente. Com o tempo chegou-se à conclusão de que tudo era mentira, mas milhares de pessoas foram mortas, feridas, humilhadas, despojadas de seus bens, presas e torturadas no Iraque em nome de “valores” falsos e visões fantasiosas da realidade. Para abater um ditador (e existem tantos amigos dos EUA e do Ocidente) não precisava arrasar um povo. As razões eram geopolíticas e econômicas.
Os dois temas fantasiosos ora recorrentes são os muçulmanos na Europa, a descaracterizar o “Ocidente”, como se os europeus não tivessem pilhado por dois séculos as riquezas e o trabalho de asiáticos, africanos e até latino-americanos, com desprezo total pelas respectivas culturas. O objetivo da xenofobia é econômico. Torna-se nacionalista uma Europa imersa em profunda crise a esconder que os europeus precisam fazer trabalhos rudes ou migrar, à falta de alternativas no continente.
A outra onda midiática é a que pinta o Irã – país desalmado – como prestes a dominar o saber nuclear, com o fito imediato de arrasar Israel e destruir o Ocidente, como se isso fosse fácil, imediato, factível e não possuísse o Estado judeu ogivas, bombas e mísseis nucleares, além da mais poderosa e destrutiva máquina de guerra da região, apoiada diretamente pelos EUA, capaz de tirar do mapa o Irã (que sabe disso) em questão de horas. Além do mais, existe dentro de Israel 1,5 milhão de palestinos e à sua volta 5 milhões de muçulmanos. Todos seriam atingidos.
O objetivo, no caso, é impedir a todo custo o surgimento – além da Turquia – de outro poderoso ator geopolítico na região da Ásia Central, zona de influência da Rússia e da China. Nessa empreitada, o Ocidente conta com o apoio de todos os países árabes monárquicos da Península Arábica e Golfo Pérsico (Arábia Saudita e os outros emirados). Para nós, o ideal seria derrubar a teocracia iraniana, jamais vulnerar um antigo e valoroso povo. Foi Ciro que libertou a Judéia dos babilônios. Bombardear o país não ajuda os iranianos, fortalece o regime.
Voltemos ao Brasil. Revista semanal dá-nos exemplo de jornalismo parcial. Ao comentar as discussões na Suprema Corte americana sobre os limites do Estado em face das liberdades individuais, relativamente aos planos de saúde, a ela tece elogios. Mas, na página seguinte, exatamente na seguinte, critica o Superior Tribunal de Justiça do Brasil pelo fato de prestigiar o direito fundamental e universalmente reconhecido de a pessoa não estar obrigada a fazer prova contra si própria. O Estado tem outros meios repressivos e probatórios para evitar que as pessoas dirijam drogadas, a começar pelas penas. A decisão foi correta.
A revista elogia as tolices argumentativas dos juízes americanos, dizendo que eles falam a “língua do povo”. O “justice” Antonin Scalia, por exemplo, disse essa pérola: “Todo mundo, mais cedo ou mais tarde, precisa comprar comida. Se isso for definido como ‘mercado da comida’, todos estamos nesse mercado. O governo então pode me obrigar a comprar brócolis?” Ora, o Advogado Geral do Governo defendia que todo americano deveria ter um plano de saúde (40 milhões não aguentam tê-los), mas se todos tivessem o preço cairia e deixaria de onerar os cofres públicos.
Aqui no Brasil o pagamento à Previdência é universal e compulsório. O “justice” John Roberts emendou: “Então o governo pode exigir que eu compre um celular porque o aparelho vai ser útil na hora de uma emergência?” É um disparate, uma analogia descabida e pouco inteligente. A Constituição brasileira, só para comparar, prescreve que a “saúde é direito de todos e dever do Estado”. Lá, quem não pode ter plano de saúde, vira indigente. O “justice” Samuel Alito, para fechar, disse: “Podemos comprar um seguro-funeral. Podemos comprar um seguro-saúde. Mas todo mundo será enterrado ou cremado um dia. Qual a diferença?”
Sinceramente não entendi o entusiasmo da revista. Espero que ainda existam juízes em Washington. São nove ao todo e nem todos são tacanhos. Ao invés de falar de brócolis deveriam aplicar o direito com sabedoria, deixando de lado o “eu” em favor do “nós”. Certas revistas continuam “colonizadamente” a exaltar quem não merece exaltação. Lá o Estado não pode obrigar ninguém a comer brócolis, aqui obriga-se a pessoa a confessar?
Faça seu comentário