[Artigo publicado no jornal Estado de Minas de 26/11/2017 e também veiculado no Correio Braziliense de 19/11/2017, com o título O “come cotas” sobre fundos de investimento fechados e o princípio da anterioridade]
É premissa básica de direito e de Justiça que as regras que prejudicam devem ser conhecidas antes da tomada de decisão do potencial prejudicado.
A Medida Provisória 806/17 criou o fato gerador do imposto de renda incidente sobre a valorização de cotas de fundos de investimento em regime de domínio ou condomínio fechado, antes livres de incidência (incentivo).
A mudança institui a cobrança do IRRF sobre a valorização das cotas ocorridas entre a data da aquisição e o último dia útil dos meses de maio e novembro de cada ano, ajustados pelas amortizações ocorridas. Antes, o imposto só era cobrado sobre o ganho efetivamente apurado quando do encerramento do fundo. Agora, os fundos fechados são iguais aos abertos na tributação.
Apesar de constituir uma antecipação do tributo a ser cobrado no resgate, essa forma de cobrança, que já é praticada nos fundos abertos, provoca prejuízos ao investidor por duas razões. Em primeiro lugar, porque incide sobre um acréscimo de valor, que não representa ainda renda efetiva, já que a valorização presente do fundo não significa que ao final o investidor terá se enriquecido na mesma proporção. Somente quando realizando o ganho de capital ocorre o fato gerador. Em segundo lugar, porque o imposto é cobrado na forma de redução das cotas (resgate compulsório). É recolhido na fonte pelo administrador do fundo, que repassa o encargo ao investidor por meio da redução da sua participação, diminuindo a rentabilidade do próprio investimento. Daí o apelido de “come cotas”. É um imposto sobre o capital em si, sem previsão legal.
O Imposto de Renda não precisa respeitar o princípio da anterioridade nonagesimal, norma que impede a cobrança de tributos antes de decorridos 90 dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, sujeita-se à anterioridade anual, ou seja, é proibido cobrar o imposto no mesmo exercício financeiro em que instituído. Por isso, a medida provisória determinou que o tributo passará a incidir sobre os fundos fechados somente a partir de 2018. Neste ponto andou bem.
Entretanto, as novas normas acabam provocando efeitos retroativos e violam o princípio da não surpresa, que informa a regra da anterioridade. Isso porque, mesmo os investimentos realizados antes da vigência da lei nova terão a sua valorização considerada fictamente pagas ou creditadas aos cotistas para fins de incidência do IRRF já em 31 de maio de 2018.
O fato gerador do imposto sobre a renda é formado por todas as mutações patrimoniais ocorridas ao longo do período de apuração. Sendo assim, para respeitar o princípio da anterioridade, a Medida Provisória 806/17 deveria ter determinado a incidência do “come cotas” somente para os investimentos cuja aplicação tenha se dado após a data da sua produção de efeitos, ou seja, nos fundos criados a partir de janeiro de 2018.
O STF revisou a Súmula 584, quando do julgamento do RE 592.396/SP, de relatoria do ministro Edson Fachin. Na ocasião, questionava-se a constitucionalidade do artigo 1º, I, da Lei 7.988/89, que majorou a alíquota do Imposto de Renda incidente sobre o lucro proveniente de exportações incentivadas ocorridas no mesmo ano-calendário em que publicada a lei, ainda que declarado e vencido o imposto no ano subsequente. O STF julgou que não podia.
A súmula dizia: “Ao Imposto de Renda calculado sobre os rendimentos do ano-base aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração”. (STF, Sessão Plenária de 15.12.1976, DJ de 3.1.1977, p. 6).
É premissa básica de direito e de Justiça que as regras que prejudicam devem ser conhecidas antes da tomada de decisão do potencial prejudicado. É direito dos investidores preverem a tributação total do investimento antes da opção de realizá-lo e não já iniciado, o que equivale a alterar as regras do jogo no decorrer da partida.
Portanto, entendemos que os contribuintes podem ingressar em juízo para pleitear seu direito de não serem tributados pelo IRRF antes do encerramento do fundo de investimento quando esse tiver sido constituído até 31/12/2017, resguardando assim a anterioridade anual.
O Estado foi feito para a sociedade, e não o seu contrário. Os juízes se preparam para nos resguardar. Não são servos do rei, mas aplicadores prudentes da lei, segundo a Constituição.
No caso em pauta, cabe distinguir valorização de ativos e a realização de resultados. Quando se tributam na fonte salários, honorários, aluguéis, juros é porque houve “realização” do resultado. Quando se tributa um ganho de capital, como por exemplo um ganho na loteria, uma doação pecuniária, um adiantamento de legítima, um spread bursátil (compra e venda de ações no mesmo dia, com lucro), essa tributação é última e final. Não é como no Imposto de Renda uma antecipação (que será descontado na declaração). Tributar uma “valorização” (sem realização) implica deduzir na declaração possíveis desvalorizações. Mas não é assim!
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