Como sempre, pagaremos o preço da prepotência do Estado-leviatã. É o progresso técnico provocando o regresso ético.
Um juiz federal americano entendeu que o programa ilimitado de espionagem norte-americano feria de morte o direito à intimidade pessoal previsto na Constituição do país. No Brasil somos mais explícitos, exigindo prévia e fundamentada autorização judicial. Outro juiz considerou que o programa não apresentava evidências de abuso pelo Estado da intimidade das pessoas, e acrescentou que se já existisse a derrubada trágica das torres gêmeas com o seu séquito de horrores, poderia ter sido evitada (poderia foi o tempo do verbo utilizado pelo magistrado).
Qual dos dois está com a verdade nesse caso? Orwell, como é sabido, previu o “Grande Irmão” (o Estado todo poderoso da era tecnológica) a controlar tudo e todos. O combateu ferozmente em obra pioneira, à moda de Vitor Hugo ou Michelangelo, artistas sondadores do porvir da humanidade. Orwell, porém, foi o menos fantástico e o mais realista. Viu de perto o surgimento na era moderna do Leviatã, referido há séculos por Hobbes. (O Leviatã aparece primeiro como o monstro das águas em vários relatos das religiões antigas. Ele e Raab foram — na qualidade de feras telúricas — vencidos pelos deuses, entre eles Javé, para garantir o mundo contra o caos primordial que precedeu o cosmos). A coisa, portanto, apresenta contornos cósmicos e mitológicos. No fundo, de tudo emerge a ideia-força da ordem contra o caos.
As “razões de Estado” — para voltarmos ao chão da história — sempre foram e serão o argumento básico do poder para invadir a intimidade dos particulares. A liberdade da pessoa humana e sua imanente dignidade sempre foram e serão os fundamentos dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos contra as intromissões do Estado. Esse tem sido um hábil formulador de teses intromissivas, bastando citar umas poucas: a supremacia do interesse público sobre o privado; a presunção de legitimidade dos atos administrativos; a intocabilidade dos bens do Estado; a tese realenga de que o rei nunca erra ou a vaticana infalibilidade do papa em questões de fé. Por seu lado, o constitucionalismo liberal, os crimes de responsabilidade dos governantes, a responsabilidade civil do Estado pelos atos dos seus funcionários e as declarações de direitos dos homens foram conquistas históricas da prevalência dos cidadãos sobre os poderes do Estado.
Nesse meio século que se passou, em nome do interesse público, Hitler resolveu exterminar os judeus; Israel ocupa, toma e se implanta na Cisjordânia; Stalin deu de fazer o seu Gulag; Mao matou milhões de pessoas; Fidel construiu seus paredões de fuzilamentos; as ditaduras sul-americanas torturaram e mataram seus opositores; Pol Pot exterminou milhões de compatriotas, e assim por diante.
Os EUA já foram antissemitas e racistas, mormente contra negros e latinos. A luta pelos direitos civis e a eleição de Obama pareciam indicar que a superpotência chegara ao apogeu, passando a borracha no genocídio dos índios e nas crueldades racistas (ver o filme: O mordomo da Casa Branca). Ledo engano. Guantánamo com presos sem acusação formal, a tortura aplicada em inimigos, e, agora, essa espionagem avassaladora nos mostra, lá e cá, ser preciso redobrar os esforços para controlar o Grande Irmão.
O argumento do juiz que avalizou a espionagem baseou-se na supremacia da “segurança nacional”, o argumento sempre invocado para a quebra dos direitos e garantias individuais (sigilo de dados, de correspondência, bancário, telefônico, pessoal, fiscal) previstos nas Constituições e nas leis do mundo ocidental civilizado. A prevalecer o argumento, inexistirá a preservação da intimidade. Além da guerra, pessoas e corporações terão acesso à nossa vida, nossas relações e negócios, de modo indiscriminado, pois, com o Estado, milhares de bisbilhoteiros invadirão nossa privacidade, na esteira da luta contra o terrorismo, o narcotráfico e a lavagem de dinheiro.
Mas, dirão os ingênuos, então os Estados não têm o direito de defenderem-se? Sempre tiveram e se excedem. Há, por exemplo, drones matando civis pelo mundo, porque os EUA lutam “contra o terror” (fazendo o mesmo). A minha resposta é simples. Uma vez inexistentes os sigilos que protegem nossa vida, os sicários, os bandidos, os políticos corruptos desenvolverão novas linguagens e formas de agir que não passem pelos filtros da espionagem generalizada.
Como sempre, nós pagaremos o preço da prepotência do Estado Levitã. É o progresso técnico provocando o regresso ético da humanidade. É nisso que dá a arrogância do poderio imperial e a revolta dos humilhados (terrorismo) em escala global. Disso o Brasil está livre. Não ameaçamos nem subjugamos outros povos e ninguém quer nos aterrorizar. Quando muito somos prejudicados pela nossa leniência contra os criminosos. Temos aversão pelas penas longas e pusemos na Constituição a proibição da pena de morte e da perpétua. Precisamos com urgência de uma emenda constitucional.
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