De Budapeste a Berlim

Sem engarrafamentos, buzinanças e correrias, tudo se resume a planejar e realizar, verbos que o Brasil não conjuga bem.

Às 14h45 de 20 de setembro o avião saía de Paris. Às 16h35 taxiava no aeroporto de Budapeste, Hungria. Iniciava-se então um percurso terrestre de 846 quilômetros até Berlim, passando por Bratislava (Eslováquia), Viena (Áustria), Praga (República Checa), Dresden e Postdan, cidades da ex-Alemanha Oriental. Realidades diversas das nossas apropositaram-se. A mídia não noticia a violência banal, roubos, assassinatos, salvo quando espetaculares. Nós, ao revés, somos sedentos pelas páginas policiais. A impressão que se tem nesses lugares é de uma maciça classe média, dignificando o princípio da igualdade, a única herança boa do socialismo real, que liberdade e fraternidade não havia.

Agora há liberdade, inclusive a econômica. Os campos são cultivados palmo a palmo, permeados por grossas camadas, a dois metros dos rios, de árvores ciliares, a protegê-los. Há tufos de bosques, mormente no cimo dos montes rasos. A Panônia – toda essa região –, como a chamavam os romanos, é a larga bacia dos Cárpatos a beirar o Danúbio. São cultivados a planta do feno, beterraba, repolho, colza, girasol, cevada, trigo, vinhedos e batatas, muitas batatas. Tudo tem batata e carne de porco. As casas campesinas, isoladas ou aldeadas são cartões-postais. A eletrificação e a informatização estão onipresentes. O livro de Eça sobre a cidade e o campo perdeu atualidade. Aqui não tem jeca-tatu nem latifúndio nem senhor de engenho e seus rejeitos. A complicação jurídica é outra: entre os antigos donos e as sociedades agrícolas implantados pelos regimes comunistas, hoje capitalistas e bem-sucedidas.

Não vimos nem sentimos no ônibus um buraco ou uma depressão sequer nas estradas, fossem free-ways, secundárias ou mesmo vicinais, do interesse das comunidades locais. Para nós um espanto e, no fundo, uma vergonha danada. E a ausência de acidentes? Não vimos um sequer. As pistas são isentas de remendos. Inexiste a prática do “tapa-buraco”. Quando renovam, o fazem quilômetros a fio. Vimos na Alemanha. Em todas as capitais não há fios expostos, estão em dutos subterrâneos, exceto os tramos dos veículos leves sobre trilhos, onipresentes em todas as cidades, juntamente com os ônibus articulados, bondes e metrôs. Não se veem engarrafamentos, buzinanças e correrias. Tudo se resume a planejar e realizar, verbos que o Brasil não conjuga bem. Aliás, Budapeste ao tempo do Império Austro-Húngaro ou a chamada monarquia do Danúbio, dos Hapsburgos, findado após a primeira Guerra Mundial, depois de três séculos, foi a 1ª capital a ter metrô na Europa Continental. Na Europa, incluindo as ilhas, Londres tem a primazia.

Falemos de estética urbana. A branca e amarela Viena desbancou Vancouver no Canadá. É a primeira em Índice de desenvolvimento humano (IDH). Budapeste é a Paris do Danúbio como São Petersburgo o é do Báltico. Praga está entre as 10 mais belas cidades do mundo. Berlim surpreende com seus largos espaços no meio de bosques imensos e uma arquitetura de vanguarda, mas padece de um mal. Há milhares de apartamentos vazios (em Viena já não se constrói). Saem em busca de empregos em lugares mais industrializados. Aliás, na Europa do Norte, da França para o Setentrião, a média é de um filho para quatro adultos. Esses países limpos e restaurados, de Budapeste até Berlim, foram drasticamente destruídos e desarticulados na 2ª Guerra Mundial. (de 1939 a 45).

Ademais, até 1991 e um pouco além, viveram sob o regime comunista (exceto a Áustria) quando houve desmazelo em relação a sítios históricos, culturais, urbanismo e meio-ambiente. O fato de estarem tão restaurados nos causa inveja e desnuda a nossa incompetência. Em Budapeste, russos e alemães lutaram casa a casa. Berlim e Dresdren foram destruídas até dois dias antes do final da guerra por vingança de Churchill. Os trens, hidrovias e caminhões cortam a Europa do Leste em todas as direções. O restauro deixa-nos boquiabertos. Um contêiner saído de Hamburgo ou Roterdã chega à Romênia por rio, trem ou estrada, tamanha a rede multimodal.

E, para não dizer que não falei de flores, logo lhes digo dos deslumbrantes tons dos olhos das eslavas, desde o azul-clarinho das águas marinhas, passando pelo cinza aveludado de todos os matizes, até os verdes e os violetas. São mesmo lindas, as germânicas nem tanto. “C’est la vie.” Sempre me perguntei onde era o segundo mundo, porque estamos, não duvidem, no terceiro. Agora entendo onde ele estava. Ao menos em qualidade de vida e ausência de pobreza e miséria, o que não implica necessariamente o tamanho do PIB, a Europa do leste já não está no segundo, mas no primeiro. Há um PIB invisível: igualdade, bem estar, meio ambiente, cultura, beleza, experiência, a lembrança da barbárie das guerras, uma visão clara de como o mundo é, osso duro de roer, e de que devemos usufruir, sem culpa, as boas coisas de nossa vida fugaz.

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