Aposta pela supremacia mundial

Um conflito direto com os EUA é simplesmente muito perigoso na era nuclear e não acontecerá a menos que todos os lados cometam erros de cálculo muito graves!

Sacha Calmon
Advogado, coordenador da especialização em direito tributário da Faculdades Milton Campos, ex-professor titular da UFMG e UFRJ

A diferença na escala das ambições da China e da Rússia reflete a diferença de seus potenciais econômicos.

Moscou simplesmente não tem riqueza suficiente para sustentar uma tentativa de disputar a supremacia mundial. Em contraposição, a China, segundo algumas estimativas, é a maior economia do mundo. É também a maior potência industrial e a maior exportadora. Sua população de 1,4 bilhão de pessoas é cerca de 10 vezes a da Rússia. Consequentemente, para a China é realista aspirar a ser o país mais poderoso do mundo.

Há algo de desespero na disposição de Putin de usar a força militar para tentar mudar o equilíbrio de poder na Europa. A Rússia é forte mesmo em poder nuclear. Depois de ver a Otan se expandir para boa parte do que foi o bloco soviético, Putin vê a Ucrânia como sua “última trincheira”. A Otan é usada pelos EUA para cercar a Rússia. Eu me pergunto qual a razão!

Em Pequim, por outro lado, existe uma forte sensação de que o tempo e a história estão do lado da China. Os chineses também têm muitos instrumentos econômicos para expandir sua influência, que simplesmente não estão disponíveis para os russos. Um projeto característico dos anos 11 é a Iniciativa do Cinturão e da Rota da seda (BRI, na sigla em inglês), um vasto programa internacional de obras de infraestrutura financiadas pela China que se estende para Ásia Central, África, Europa e América do Sul.

Como os EUA se tornaram mais protecionistas, a China também vem usando seu poder no comércio para ampliar sua influência global. Foi lançada a Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP, na sigla em inglês), uma nova e vasta área de livre-comércio na região Ásia-Pacifico que inclui a China e vários aliados estratégicos americanos, como Japão e Austrália – e da qual os EUA não participam. Permitir ou negar acesso ao mercado chinês dá a Pequim uma ferramenta para exercer sua influência que Moscou não dispõe. Mas, por outro lado, a Rússia tem mísseis intercontinentais e tantas ogivas nucleares quanto os EUA e mais de 50 submarinos atômicos, mas sete mares com autonomia para ficar em ano navegando permanentemente.

Mas o gradualismo funcionará? Ou a Rússia e a China precisam de algum tipo de momento dramático para criar a nova ordem mundial que buscam?

Grande parte da arquitetura institucional e de segurança da atual ordem mundial surgiu no fim da 2ª Guerra Mundial ou logo depois: a Organização das Nações Unidas (ONU), o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) foram criados e suas sedes estabelecidas nos EUA. O Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt, na sigla em inglês) entrou em vigor em 1948. A Otan foi criada em 1949. O Tratado de Segurança entre os EUA e o Japão foi assinado em 1951. A Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, a precursora da União Europeia (UE), também foi fundada em 1951. Com o fim da Guerra Fria, instituições rivais patrocinadas pelos soviéticos (o Pacto de Varsóvia), desapareceram e a Otan e a UE se expandiram até as fronteiras da Rússia.

A questão é se a Rússia e a China precisarão de uma guerra. Um conflito direto com os EUA é simplesmente muito perigoso na era nuclear e não acontecerá a menos que todos os lados cometam erros de cálculo muito graves!

Uma nova ordem mundial poderia surgir por meio da concordância tácita de Washington. Esse resultado parece improvável no governo do presidente Joe Biden, a menos que os EUA façam algumas concessões drásticas. Mas Donald Trump pode voltar à Casa Branca em 2024. Pelo menos retoricamente, ele parece simpatizar com vários aspectos da visão de mundo russo-chinesa. O ex-presidente dos EUA denegriu a Otan em algumas ocasiões e sugeriu que os aliados dos EUA na Ásia eram aproveitadores. Sua filosofia “EUA em 1º lugar” passou longe do discurso tradicional sobre a missão dos EUA de sustentar o liberalismo em todo o mundo. Em certos momentos, ele também manifestou francamente sua admiração por Xi e Putin. E, como um autoproclamado grande negociador, Trump é simpático à ideia de esferas de influência. Mas Rússia e China não parecem dispostas a sentar e esperar que Trump volte à Casa Branca. Sabem que o Partido Republicano de Trump tem muita gente decidida a buscar o confronto.

A impaciência da Rússia fica clara com a disposição de Putin de repudiar a Otan na Ucrânia. Uma nova ordem mundial que agrade mais à Rússia pode depender de que sua aposta ucraniana dê certo. Mas mesmo que Putin não consiga atingir seus objetivos na Ucrânia, a ameaça à ordem mundial liderada pelos EUA não desaparecerá. Os EUA, ademais, estão exauridos depois da saída desordenada de Cabul, do Afeganistão. Na visão alemã, a Otan deveria desaparecer. De defensiva, com o fim da Guerra Fria, tornou-se uma aliança ofensiva, com os EUA obcecados com a Rússia, algo poderosamente simbólico sem correspondência real no século 21.

Lá no fundo está a poderosa China. Suas armas são comércio e tecnologia! A Rússia distribui petróleo e gás para a Europa inteira. Que haja paz!

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