Nunca imaginara estar preso. Estava! Perguntava-me se era situação passageira. Poderia ser ou não. Rompido o Estado de direito, o poder da força tornava incerto meu destino. Logo estaria indiciado no inquérito policial militar (IPM) dos estudantes, com base na Lei de Segurança Nacional (10 a 15 anos de prisão).
Em 31 de Março de 1964 o governo constitucional do Brasil foi atacado e deposto por uma insurreição militar com apoio de importantes segmentos da sociedade civil. O governador Magalhães Pinto foi a principal figura civil do golpe de Estado, ao declarar Minas Gerais sublevada contra o presidente João Goulart (Jango).
Na qualidade de vice-presidente da União dos Estudantes Universitários de Minas, cujo comando era de esquerda, fui preso e encarcerado com estudantes, professores, líderes sindicais e jornalistas considerados subversivos. O mote da insurreição era defender a pátria e a família do comunismo ateu, com o apoio velado, mas efetivo, dos EUA, no auge da Guerra Fria com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Com as pernas dobradas num cubículo de meio metro de altura, às escuras, rememorava os fatos do dia que me levaram à cela solitária. Thacyr Menezes Sia me pusera nela como castigo. Era delegado de polícia de classe especial, inimigo do movimento estudantil. Etnicamente era eurasiano. Dizia-se que era de mãe portuguesa em Macau, colônia lusa, no estuário do Rio das Pérolas, perto de Hong Kong, hoje integrada à China. O pai seria chinês, adepto de Chiang Kai-sheck, aliado dos EUA, derrotado por Mao Tsé-Tung na grande guerra da libertação e expulso em 1950 para a Ilha Formosa (Taiwan). Eu lhe dissera que o povo logo derrotaria aquela quartelada. Desafiou-me a escrever contra o movimento militar. Aceitei de pronto. Deu-me mesinha, papel e caneta e me colocou num canto da carceragem, fora da cela. Nela, uns 50 companheiros estavam de pé ou sentados, joelhos encolhidos no tatame em que dormíamos amontoados. Um gesticulava e me gritava, entre irritado e paternal: “Deixa de ser bobo menino, tá fazendo prova para eles? Rasga, come, engole!”. No caso, engolir a verrina que estava escrevendo contra a “revolução” para deleite de Thacyr. Era Dazinho a pessoa que gritava, líder dos mineiros de Nova Lima (Mineração Morro Velho) e deputado estadual pelo Partido Trabalhista do Brasil.
Professava o catolicismo, era ligado à Ação Popular (AP), chamada de “Esquerda Católica”. Na cela, entre tantos, dividia discretamente comigo a marmita que lhe traziam todos os dias seus familiares. “Você é o único ‘filhinho de papai’ aqui, não está acostumado.” Notara minha aversão e vômitos ao comer as rações servidas no Dops, em panelinhas amassadas malcheirosas, sopas ralas, carne de terceira, legumes sem gosto. Não estava mesmo acostumado. As pessoas se revelam nas adversidades. Dazinho era piedoso, um bom cristão. Acabei engolindo minha raiva e as páginas escritas. Thacyr ficou furioso. Dazinho tinha razão, a quartelada durou 21 anos, até que Tancredo Neves lhe desse fim. Meu arroubo custou-me uma noite na solitária, sentado, com as baratas estouvadas pela minha presença.
Quando nasceu o dia, tiraram-me da solitária. O sol entrava em réstias, nos porões do Dops. Senti uma estranha alegria. Estava vivo entre companheiros; lutávamos pelo que então achávamos ser a solução para o Brasil: o socialismo. Eu era da Política Operária (Polop) à esquerda do Partido Comunista. Do Dops fui para a Penitenciária Agrícola de Neves, até quando o então desembargador Cunha Peixoto, meu professor, negociou minha prisão domiciliar em sua honrada casa. Afastei-me da Polop.
Em 1965, já casado, nascia meu primeiro filho; tinha que trabalhar duro. Em 1967, impetrei habeas corpus perante o Superior Tribunal Militar (STM). O ministro Pery Bevilaqua julgou inepta a denúncia e todos os estudantes se livraram soltos (120). Ficaram de me dar uma caneta de ouro em retribuição. Os advogados criminalistas, na época, nos habeas corpus, pediam a soltura apenas de seus clientes. O ministro Pery, militar de carreira, então dizia: “Só não estendo a ordem aos demais corréus pois estaria indo além do pedido” (ultra petita). Eu pedira para todos.
Em 1968, veio o AI-5 e a Polop entrou na clandestinidade contra o regime. Soube que, mais tarde, Dilma e Pimentel ingressaram nela, que virou Comando de Libertação Nacional (Colina) e Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (Var-Palmares), organizações de contrarrevolução.
Eles hoje estão no poder, em Minas e no Brasil. Eu continuo na oposição, buscando o melhor para o país. Acho – lição dos tempos e da história – que o Estado deve cuidar, mesmo com auxílio do setor privado, somente de educação, infraestrutura básica, saúde, segurança, polícia, justiça, forças armadas e diplomacia, igualando oportunidades. O resto nós fazemos.
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