Devemos ficar atentos à ameaça de retrocessos na Turquia
Indivíduos autocráticos no poder em democracias, que os obriga a disputar eleições, desencadeiam violência institucional, mentira e medo. Foi o caso da eleição presidencial no Brasil em 2014. O mesmo na Argentina e na Venezuela (já é uma semiditadura).
Não poderia ser diferente na Turquia. Erdogan perdera representação parlamentar. Como o regime é parlamentarista, o presidente quis fortalecer-se (a) tomando poderes do primeiro-ministro e; (b) modificando a Constituição em pontos sensíveis, tais como sua reeleição pela terceira vez, maior controle sobre as Forças Armadas e introdução de normas islâmicas no governo e nas leis, pois desde Kemal Atatürk, o idealizador da Turquia moderna, os partidos são civis, o estado é laico, há direitos e garantias individuais, liberdade religiosa e separação entre o Estado e a igreja.
Os “jovens turcos” surgiram após a derrocada do Império Otomano, na Primeira Guerra Mundial, aliado da Alemanha. No confuso período após a rendição do sultanato, jovens militares empolgaram o poder e o povo com a proposta de tornar a Turquia um país progressista semelhante às democracias europeias, contra o poder descontrolado dos sultões, chefes de Estado e da religião islâmica (no caso, sunita).
A figura mais proeminente do movimento era o culto oficial que entrou para a história como o “fundador” de um novo país, daí o apelido Atatürk (pai dos turcos). Com larga visão, repeliu mediante combates militares e negociações a desocupação do país em troca do império, de resto já perdido e de um futuro democrático; converteu o alfabeto turco, cuja língua é do ramo amarelo, parecido com o mongol, para o alfabeto ocidental. Abriu universidades no modelo ocidental (a Turquia hoje tem 178 universidades), instituiu o voto secreto e universal, inclusive para as mulheres, e o Estado laico com o mesmo rigor da França, adaptou o direito turco aos códigos do Ocidente, modernizou a economia, criando um novo empresariado, e as Forças Armadas, expurgando-as do oficialato islâmico. Convocou uma constituinte que, ao erguer a Lei Maior, confiou aos militares o papel de manter o Estado democrático de direito e sua absoluta separação da religião (num país em que 90% da população se declarava muçulmana). Pessoalmente, achava o islã “a religião atrasada de um beduíno ignorante”.
Em 2023, quando a nova Turquia fará 100 anos, Erdogan diz que convocará os muezins a saudarem dos minaretes das mesquitas um país forte, com renda per capita de US$ 26 mil, a décima do globo, restaurando, assim, o esplendor do antigo Império Otomano. O nacionalismo é e será sempre a arma dos demagogos.
Em editorial (Opinião, 8/11), o EM nos explica como o perigoso Erdogan ganhou as eleições parlamentares de novembro de 2015: “O AKP, há 13 anos no poder e desgastado por crise econômica e social, recebeu em junho aval de apenas 40% dos eleitores. Enfrentou a divisão do eleitorado com diferentes facções – seja de esquerda, seja de direita, seja pró-curdos, todos derrotados nas eleições de domingo passado. A virada se deveu a estratégia velha conhecida dos venezuelanos e bastante explorada na campanha petista do ano passado: o AKP fez campanha baseada no medo. Recorreu a ameaças concretas que assustam a população e ampliou-as com riscos imaginários. É o caso do terrorismo e da questão curda, que se mantém na pauta desde o estabelecimento da República, em 1923. Sem território próprio, o grupo étnico se espalha por Iraque, Síria e Turquia. Depois das eleições de junho, o Exército turco e militantes do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) suspenderam o acordo de cessar-fogo. As consequências não tardaram. O fim da trégua está na raiz de atentado suicida ocorrido em julho, que deixou 30 cadáveres curdos na fronteira com a Síria. Em outubro, 102 pessoas morreram e 400 ficaram feridas em ataque registrado durante marcha pela convivência pacífica com os curdos. A finalidade seria apresentar Erdogan como o homem forte, capaz de dar resposta ao desafio que cresce com a instabilidade dos vizinhos árabes, a pressão curda e a imigração crescente de sírios e africanos que fogem de guerras e perseguições políticas.”
Erdogan quer negociar sua entrada na União Europeia, mas é um islamita fanático e corteja a introdução da “sharia” no direito do país. Nada fez contra o Estado Islâmico (EI), quer influenciar a Síria e combater os curdos sírios e um possível Curdistão no Norte do Iraque (17 milhões), por causa dos curdos da Turquia (20% da população de 78 milhões de habitantes).
Devemos ficar atentos à ameaça de retrocessos na Turquia de Atatürk. Os curdos do Norte do Iraque, por exemplo, têm sofrido ataques da aviação turca, a pretexto da guerra contra o Estado Islâmico (EI), mas não combatem os sunitas do EI e ainda protegem os rebeldes que querem derrubar Assad. Recentemente, derrubou um caça russo, alegando defesa do seu espaço aéreo, mas invadiu o Norte do Iraque, sem permissão. Mente. Não merece fé.
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