Não fossem os negros ou mesmo os sons norte-africanos e berberes, muito pobre seria a musicalidade das Américas
Lira Neto, mestre escritor, pesquisador como poucos, que me perdoe, mas o samba não nasceu no Rio, que o desenvolveu à exaustão, mas na Bahia (por pouco nasceria no Maranhão). O samba é simplesmente a aceleração do sétimo ponto do candomblé, o culto aos orixás, na louvação ao Deus supremo de todas as deidades que a África nos legou e sentou praça no recôncavo da Bahia de Todos os Santos e, provavelmente, de todos os pecados. O samba de tambor como seus muitos ritmos irmãos, no Brasil de épocas remotas, nem nome tinha. Precede o reco-reco, a cuíca e o tamborim, mais tarde agregados ao gênero pelos músicos negros e mulatos em suas constantes invenções.
No princípio era a cabaça furada e suas sementes secas, os tambores de tocar sentados e acomodados nas pernas; os sons profundos, entrecruzados dos atabaques batidos por mãos fortes, em pé, e a cantoria repetitiva em ketu, nagô ou iorubá, línguas africanas. Se assim não fosse, como explicar as alas das baianas nas escolas de samba do Rio? O samba exigiu professores, ensinança. O nome escola é fruto do acaso ou terá uma razão mais intuitiva? Poderia ser bloco, cordão, tum-tum, sei lá!
E por que os sambistas mais antigos do Rio se referem, todos, sem exceção, às ciatas da Bahia, que marcavam na palma das mãos e com seus volteios nos terreiros do Rio, os primitivos balanços do samba original? Por acaso, o samba de roda na palma da mão, em dois tempos, não é o precursor do sapateado dos bambas nas gafieiras? Aliás, o samba carioca é pouco criativo, estacionou no fundo dos quintais da zona norte, no samba-exaltação e no samba-desfile, em que a letra nada tem a ver com os tambores das baterias ensurdecedoras. A música negra americana se repartiu e se multiplicou em estilos. Aqui, de novidade, só com Baden Power, João Gilberto, Caetano e Gil, a bossa nova e a tropicália. E o Tom! O maestro brasileiro. Ele e seus epígonos impuseram passagens de música clássica ao samba e letras literárias e poéticas, dignas de cartola.
Até hoje, a batida do samba da Bahia difere do das baterias do Rio, mais polifônicas e pesadas. O samba nasceu daquelas rodas de samba de escravos à volta de uma fogueira nas fazendas e arredores da cidade do Salvador (sotero, em grego), daí dizer-se que o natural de Salvador é soteropolitano. Aqui cesso minha divergência com o jovem escritor do Ceará, que já nos legou uma obra notável sobre Getúlio Vargas, opulentando a historiografia brasileira e latino-americana.
O que se pode dizer agora é a formidanda influência rítmica e sonora da mãe África para a musicalidade do continente americano, desde os EUA até a Patagônia. Com efeito, a música norte-americana, o swing típico que lá se pratica e dança, toda a música caribenha, a mexicana e de toda a América Latina, devem muitíssimo à África (proteiforme é a sonoridade nas três Américas). Mas todas elas devem aos ritos e ritmos trazidos da África o seu desenvolvimento. Nesse sentido, em última análise, as sementes do samba são africanas. O mesmo diria da rumba, não, porém, do tango, meio cigano, meio guarani, um tanto de fado galego, mas essencialmente argentino.
Não fossem os negros ou mesmo os sons norte-africanos e berberes, muito pobre seria a musicalidade das Américas, servil às danças e sonoridades europeias populares, medievais, flautadas e cantadas, sem maior expressão (não confundir com a música erudita europeia, incomparável).
Ao fim, o paradoxo. O carnaval de 2017 foi tão intenso, a demonstrar uma ânsia insuperável de buscar alegria que me deixou perplexo, pois li que os brasileiros são — respeitado o tamanho diferente das populações — os mais deprimidos entre os povos habitantes do continente americano. Como pôde haver tamanha alegria de viver com 13 milhões de desempregados e o país metido em profunda recessão?
Afora o samba, as danças africanas e ritmos de Portugal — é ver o carimbó de Belém do Pará — geraram uma multiplicidade de ritmos e danças no Brasil. O forró, que vem de forrobodó, jamais de for all inglês (baile para todos), vera lenda urbana; o xote, o baião, o maxixe, o frevo, o coco, as cantigas de ninar, como o boi da cara preta e muito mais.
Não é questão menor. Existe o samba e suas variações no Rio, Bahia e Maranhão. Agora, o ritmo do samba modificado para se cantar e dançar, esse vem do ponto com os atabaques do candomblé do recôncavo da Baía de Todos os Santos e seus devidos pecados. A literatura deve dar o crédito que a história merece. A verdade é um bem.
Carnaval à parte, surpreendentemente este ano as manifestações políticas existiram, mas sem a força de outros tempos, ou talvez signifique o fim da era lulista, uma sensação de liberdade. No entanto, o país é mesmo uma vocação lúdica. Nada menos de 110 milhões ficaram até à meia-noite dando telefonemas para o Big Brother. À política, o que fazer pela pátria, desprezo. Ora, isso é de somenos.
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