No parlamentarismo, o governo não tem prazo certo. Os gabinetes governativos caem por vários motivos e são formados novos governos, sempre através de eleições.
O instituto do impeachment tem origem no direito norte-americano, filiado ao “Common Law”, o direito inglês costumeiro, com seus precedentes judiciais (judjemadelaw). Nossa filiação jurídica é ao direito romano-germânico, conhecido como direito continental europeu, cuja característica está em criar normas jurídicas mediante leis. Quando falamos de direito civil, comercial, tributário, penal, processual e assim por diante, a nossa referência é à praça europeia continental, excluída a Grã-Bretanha, especialmente ao direito português, espanhol (ordenações filipinas), francês (código de Napoleão), italiano e alemão.
No que tange ao direito político, entretanto, nosso parentesco é com o direito norte-americano. Isso se deve a duas vertentes distintas. Em primeiro lugar, a Europa optou pela supremacia do Parlamento e pelo regime parlamentarista de governo, nele incluído o chamado “semipresidencialismo” tardio da França (Charles de Gaulle), de Portugal (mais ameno) e, recentemente, dos países do Leste Europeu. Ainda assim, os parlamentos dominam a paisagem, ocupando o Judiciário posição mais discreta. O controle de constitucionalidade das leis é feito por cortes constitucionais, fora do aparato jurisdicional desde 1920, por obra de Kelsen.
De outra vertente, adotamos dos EUA o presidencialismo, a federação, os três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) e o controle difuso de constitucionalidade e da Suprema Corte.
No parlamentarismo, o governo não tem prazo certo. Os gabinetes governativos caem por vários motivos e são formados novos governos, sempre através de eleições. O povo arbitra as crises de governabilidade. No presidencialismo, os governos têm prazo certo, mas os governantes, os parlamentares e os juízes vitalícios podem ser deseleitos por dois instrumentos jurídico-políticos: o impeachment e o recall. Caso vertente, nos interessa o primeiro.
Nos EUA, inexiste foro privilegiado que significa “privatalex”, uma lei particular para alguns, contra o princípio de que somos todos iguais perante a lei. É um resquício nosso, odioso, do Império, que se vai findar em revisão constitucional brevemente. Lá, o impeachment tem causa genérica: decoro, gestão temerária, perjúrio, o que causar comoção e o que não couber no “bom governo”. No caso brasileiro, a Constituição de 1988 e a lei enrijeceram em demasia o instrumento constitucional. A autorização da Câmara exige 2/3 dos deputados, um quorum dificílimo. Além disso, elencamos hipóteses de destituição em caráter exemplificativo (numerusapertus), ou seja, a lista não é taxativa (nos EUA, o iter é rápido e sumário e sem itens prévios). Eles sempre são mais pragmáticos e objetivos.
A tendência no Brasil é tratar o impeachment como “processo judicial”, quando é, ao contrário, instrumento político de correção, prestigiado pela Constituição, daí decorrendo as artimanhas do advogado-geral da União em querer submeter a decisão material (mérito) a ser tomada pelo Senado à revisão pela suprema corte, tão certo está do resultado da votação desfavorável à atual mandatária.
Isso, contudo, é impossível pela própria natureza do remédio político do impeachment, tanto que não há menção a isso na literatura norte-americana (três processos: Andrews, Nixon e Clinton), nem na brasileira (Collor). Brossard a repudia veementemente, nosso autor mais prestigiado.
É fácil entender a razão. Em matéria de recursos, os países da família continental europeia construíram a tese de que toda regra de competência deve ser expressa. Destarte, os recursos, quando possíveis, quem deve recebê-los e julgá-los, exigem lei. A Constituição de 1988, no seu imenso discurso sobre a competência do STF, tanto a originária quanto a derivada, não prevê recurso de decisão do impeachment pelo Senado, sendo favorável ou desfavorável o resultado para o presidente a ele submetido (artigo 85). Por outro lado, a lei específica do impeachment, tampouco, nada prevê a respeito. Logo, em matéria de mérito, a decisão do Senado é última e irrecorrível. O STF tem controle do rito processual, controle formal para ver se foi observado o devido processo legal, os prazos, as formalidades. E nisso exaure-se a sua intervenção, já preclusas as fases anteriores do procedimento de julgamento do impeachment, de fora os casos que lá chegaram e foram repelidos.
De ver que esse processo, além de não ter natureza de ação judicial, não se passa no interior do Poder Judiciário, perante um órgão jurisdicional. Longe disso, ocorre no âmbito de outro poder legitimado pelo voto popular, o Congresso Nacional bicameral. Seria estúrdio, contrário ao princípio da separação dos poderes, existir recurso sobre o mérito da decisão do impeachment pelo Senado. No caso reverso, “ex absurdo”, teríamos que admitir poder do Congresso de reformar acórdãos do STF!
O relatório do senador Anastasia é formidável, irretorquível. O impeachment é página virada.
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