Sacha Calmon
Advogado, coordenador da especialização em direito tributário da Faculdades Milton Campos, ex-professor titular da UFMG e UFRJ.
Vamos, então, traduzir o tributo como norma jurídica de comportamento devido, servindo-nos, como já fizemos antes, de Paulo de Barros Carvalho que vê a norma dividida classicamente em duas partes: hipótese endonormativa e consequência endonormativa. O professor paulistano define as hipóteses das normas tributárias, a que chama de endonormas tributárias, como o conjunto de critérios necessários à identificação do fato lícito, que não acordo de vontades, gerador do dever jurídico.
Define, por sua vez, as consequências das normas tributárias como o conjunto de critérios esclarecedores da relação jurídica que se forma com a ocorrência in concreto de fato jurígeno (fato gerador). Nas hipóteses, ele aponta três critérios: o material, o fato em si; o temporal, determinando as circunstâncias de tempo que envolvem o fato jurígeno já materialmente descrito; o espacial, indicativo das condições de lugar em que o fato ocorrer. Nas consequências, enxerga dois critérios, a saber:
a) o pessoal, que determina os sujeitos – ativo e passivo – da relação jurídica decorrente da realização do suposto (hipótese de incidência); e
b) o quantitativo, que esclarece o modo pelo qual será estabelecido o conteúdo do dever jurídico (base de cálculo e alíquotas).
Entende Barros Carvalho que o desenho normativo por ele apresentado é suficiente para o entendimento da fenomenologia da tributação, já que “nada mais será preciso para que conheçamos, em toda a extensão, o liame jurídico estabelecido, por virtude do acontecimento do suposto. Tendo ciência de que existe uma relação jurídica, sabendo quem são os sujeitos do vínculo e tendo meios para determinar o conteúdo do dever jurídico cujo cumprimento o sujeito ativo poderá exigir do sujeito passivo, de nenhum outro elemento será necessário cogitar, posto que está completo, em todos os seus ângulos, o desenho jurídico daquele instrumento que orienta a disciplina dos comportamentos humanos”.
Em linhas gerais, concordamos com a estrutura apresentada. Todavia, acrescentamos modificações ao desenho normativo do professor Barros Carvalho. Divergimos, outrossim, na terminologia, porquanto ao invés de “critérios” utilizamos o termo “aspecto” para qualificar as facetas da hipótese e da consequência da norma jurídico-tributária. Isso posto, ao lado dos aspectos material, temporal e espacial, acrescentamos ao fato jurígeno, na hipótese da endonorma, um aspecto pessoal. É que o fato jurígeno (um “ser”, “ter”, “estar” ou “fazer”) está sempre ligado a uma pessoa, e, às vezes, os atributos ou qualificações dessa pessoa são importantes para a delimitação da hipótese de incidência.
O aspecto pessoal da hipótese de incidência é importante, apresentando diversas serventias. Assim, para a percepção da capacidade contributiva para a graduação da progressividade, para a consideração do ilícito fiscal e da responsabilização, para o reconhecimento das isenções e imunidades subjetivas, só para exemplificar, sem falar na identificação da pessoa política que realiza as atuações estatais nos tributos vinculados a atos do Estado (taxas e contribuições).
Há fatos já descritos (aspecto material) e situados no espaço e no tempo que só ganham sentido se conotados com certas qualidades das pessoas. (Daí termos acrescentado mais um elemento à topografia básica da hipótese de incidência das normas tributárias.) Quanto ao fato mesmo (aspecto material), é mister frisar que necessariamente terá que ser um fato lícito. Se o fato for ilícito, não teremos tributo, mas multa (norma sancionante), pois toda regra punitiva tem como hipótese, como suposto, um fato ilícito, razão para a aplicação da sanção.
O fato, sobremais, não poderá ser contratual (não se contrai dever tributário por querer, por avença, ex contractu). O fato jurígeno que desencadeia o dever de pagar tributo é previsto unilateralmente. Corresponde aos deveres heterônomos referidos por Kelsen, impostos ab extra por uma vontade estranha à da pessoa destinatária do dever. As hipóteses de incidência das normas tributárias decorrem de descrições legislativas de fatos lícitos que possuem virtude jurígena, ex lege, contendo quatro aspectos: material, temporal, espacial e pessoal.
No que concerne às consequências das normas tributárias, entendemos que além dos pontos magnos relacionados por Barros Carvalho – sujeitos ativo e passivo (critério pessoal da consequência) e base de cálculo e alíquotas (critério quantitativo) –, outros aspectos são encontradiços, todos pertinentes à relação jurídica que se forma com a realização da hipótese de incidência: como, onde, de que modo, quando, em que montante se vai satisfazer o débito em favor do sujeito ativo. Além disso, o fato que é previsto e sua base de cálculo estatuída na consequência jurídica definem a espécie tributária. Será imposto se o fato for situação particular e será taxa ou contribuição se o fato for atuação estatal.
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