A ideia humana de Deus

Como a ideia do bem tem expressão na figura de Deus, o seu contrário também deveria ter; daí o emprego da palavra “Satã”, que significa “adversário”, “opositor

O Deus judaico, Jeová, por ser o personagem divino mais conhecido, o maior best-seller da história ocidental, merece destaque. Ele é o eterno Deus dos judeus. É o Deus-Pai do cristianismo e o Alah do islamismo. O Deus que gerou seu filho Jesus para a salvação cristã, e, sete séculos depois, enviou o Arcanjo Gabriel a Maomé para que ele escrevesse as suratas do Corão, o livro sagrado das religiões islâmicas, sunitas, xiitas, waabitas, alauitas etc.

Assim, desde a Antiguidade, os mitos da criação envolvem deuses que são imaginados à imagem e semelhança do homem: criam, se arrependem, destroem, se arrependem da destruição e se envolvem na história dos homens, em seus mínimos detalhes, nas mais diferentes culturas. Foi assim com o dilúvio.

A ideia humana de Deus

Racionalmente, um deus seria totalmente diverso do homem, teria que ser incriado, pois se não o fosse, haveria um criador antes dele, outro Deus, seu antecessor. Daí veio a suposição de que Deus — diferente de nós — nunca teve princípio e jamais teria fim. Deus não pode morrer, é eterno e único, pois se existissem outros deuses ou mesmo potências maléficas, o politeísmo seria a regra certa e não o monoteísmo. Consequentemente, a ideia do diabo é anacrônica como o oposto do bem, além de estranha ao monoteísmo, em que pesem as referências a seres celestiais bons e maus como querubins, arcanjos, anjos e legiões de demônios. Uma verdadeira hierarquia maniqueísta, a teoria dualista do bem e do mal! A existência de Deus afasta automaticamente outros deuses do bem e do mal.

No céu, há uma hierarquia angélica. Os serafins, mais próximos de Deus, ocupariam o alto da escada. Abaixo, viriam os querubins. Em seguida, os tronos. Logo após, os soberanos, as potestades, as autoridades, os arcanjos e os anjos. Os sete arcanjos são conhecidos: Miguel, Gabriel, Rafael, Uriel, Anael, Azaziel e Azaquiel chefiam hostes de anjos. O nome Arcanjo carrega o prefixo grego arkhé, que significa autoridade, aquele que comanda. Os demônios também teriam divisões hierárquicas: Satã seria o chefe supremo. Mas essa mitologia joga contra a lógica do monoteísmo: Deus seria o único e supremo poder. Ele tudo pode, nada nem ninguém pode contrariá-lo. Seu poder é sem limites no céu e na Terra. Não têm oponentes, do contrário não seria o único (monotheo). E se o mal é desprezível, em Deus não haveria um laivo sequer de maldade. Ele seria, por assim dizer, o supremo bem, a bondade suprema, a síntese de todas as virtudes. Logo, é totalmente diverso de suas criaturas. Onde a semelhança? Além disso, Deus, para ser Deus, tudo sabe, tudo vê, tudo provê. Ele é onisciente. Pois não se diz que nenhum pensamento humano escapa a sua percepção e que nenhum fio de cabelo nos cai sem que Deus tenha previsto e pressentido o evento? Nada mais falso do que dizer que fomos criados a sua imagem e semelhança.

Como se vê, o Deus antropomórfico apresentado pelas religiões ocidentais difere de um Deus concebido racionalmente. Além disso, como bondade suprema, Deus jamais permitiria o mal a excruciar suas criaturas. O bem supremo é incompatível com o mal. Um bom pai jamais deixaria seu filho se queimar, mesmo que contra ele se voltasse. E se Deus é bom, mesmo com os ingratos e maus (Lucas 6:35), por que consentiria o mal? Por que Deus deixaria seus filhos expostos aos males de Satã? Ou aos males da natureza que os monges escoceses chamavam de “acts of god”?

Desde a antiguidade, os povos buscavam formas de explicar as mazelas que os afligiam. Nesse afã, a construção de uma figura sobrenatural maligna ganha corpo na ideia de um “demônio”: um ser que se opõe ao bem e passará a ser aquele que se opõe a Deus. Como a ideia do bem tem expressão na figura de Deus, o seu contrário também deveria ter. Daí o emprego da palavra “Satã”, que significa “adversário”, “opositor”, da raiz semítica “shaitan”, com o sentido geral de “ser hostil” a Deus e aos homens. Para explicar essa incoerência infantil, inventou-se que satã era um serafim tão poderoso que quis medir forças com Deus e foi condenado por isso, ganhando de presente o “mundo inferior”, o inferno, a disputar com o Criador o destino dos homens (céu ou inferno após a morte) na ética mais perversa que se possa imaginar com o fito de dominar as consciências pelo medo.

Essa “deificação” do mundo sensível me levaria, por exemplo, a crer que essas chuvas de janeiro em BH são castigos de Deus ou maldades de satã. Nem uma coisa nem outra. Apenas fenômenos da natureza. Ninguém tem culpa. Vamos nos ajudar, amar uns aos outros, vivemos juntos. A natureza nos é hostil e nem sempre conseguimos dominá-la. Moral da história: É melhor prevenir do que remediar. Isso sim é viver heroicamente como nossos antepassados desde 200 mil anos ou mais! A relação dos homens com Deus é uma questão de foro íntimo! (tem sido política).

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