Somos mesmo um povo que não se levanta, se dá por satisfeito com o pouco de consideração que a burocracia lhe devota.
Paula: “Prof. Sacha, o Estado brasileiro não funciona.” Respondi que disso sabia desde priscas eras. Prosseguiu minha amiga. Vou contar-lhe as minhas desventuras: “Embalada talvez pela leitura do excelente – embora obviamente romanceado – O sonho do celta, do peruano Mario Vargas Llosa, sobre as aventuras do irlandês Roger Casement, de vida e morte miseráveis porque abraçou como meta melhorar as condições dos congoleses martirizados pelo império belga, depois de peruanos explorados pela indústria da borracha inglesa e depois, a resgatar a independência, a cultura e as tradições de sua Irlanda, subtraídas pelos conquistadores ingleses, porque, enfim, perseguiu seus ideais, eu decidi sair do marasmo, do conformismo que nos permeia, a todos nós brasileiros, fazendo-nos somente reclamar e dizer que não tem jeito. Fui à luta. “Me conte mais”, respondi (todo jornalista é curioso, quer saber de tudo desse mundo e até do outro, se é que existe).
Paula: “Uma grande obra de terraplenagem realizada às margens da estrada por onde passo todos os dias fechou-lhe uma das pistas, obrigando os pedestres (e são dezenas os que se dirigem a pé aos condomínios de Nova Lima, todos os dias) a transitarem na única faixa de rolamento restante, juntamente com os veículos. Após consulta na internet, disquei 155, aguardei as inúmeras instruções. Consegui falar com a atendente do Departamento de Estradas de Rodagem (DER), solicitando alguém para organizar ou sinalizar o trânsito de veículos e pedestres, enquanto durasse a retirada de terra. A moçoila, lampeira, me pediu o quilômetro da estrada. Constatei que não há uma única placa que indique a quilometragem (embora a obra ficasse nos 100 metros entre o trevo da Faculdade Milton Campos e o do Condomínio Vila Castela). Como sei que sou mulher, deleguei a função a pessoa do sexo masculino – e o resultado foi o mesmo. Ao tentar novo contato com o DER, descobri que seu telefone não pode ser acessado por celular. Pasmem: para falar com o Departamento de Estradas de Rodagem, devo encontrar um telefone fixo, na estrada! Em novo contato, a atendente tentou me passar outro número de telefone e desta feita fui vencida: apelei e disse que minha obrigação como cidadã estava cumprida e que se alguém fosse atropelado a culpa era do DER e da burocracia estatal. Graças ao bom Deus, finda a obra, não soube de mortos ou feridos.”
Respondi-lhe que a vida humana aqui é de somenos. Ela emendou: “Missão número dois: helicóptero sobrevoa meu bairro, espanta bolinho e faz criancinha chorar. Ele se aproxima, baixinho (abaixo do que permite a ICA 100-4) e paira em cima da minha casa, confere se meu jardim está em bom estado, se a piscina está limpinha ( é a mesma coisa com os vizinhos, todos mais que incomodados, atemorizados, depois dos inúmeros acidentes noticiados na imprensa). Consulto o site da Anac, que lista todos os aeródromos homologados e suas coordenadas, e descubro que o heliponto utilizado não é homologado (imagine o trabalho que isso deu!). Envio e-mail ao órgão fiscalizador, informando o fato e as coordenadas (nova trabalheira) e a resposta é: “O heliponto informado não é homologado”. Do que, aliás, eu já sabia, foi o motivo de minha solicitação. A atendente, morrendo de vergonha da resposta dada pela área técnica, me sugere que anote o prefixo das aeronaves utilizadas. E agora, nos horários habituais de pouso e decolagem, lá estou eu de butuca, roupa de ninja, binóculo, caneta e caderneta na mão, já que agora sou fiscal do DER, da Anac, do Decea”.
Não pude deixar de rir, embora condoído. E ela brava: “Eu exijo que alguém tome uma providência. Porque eu me recuso a ficar no buteco de tira-gosto e cervejinha reclamando da vida, esperando o anúncio da próxima desgraça no noticiário. Porque eu não quero viver no Congo Belga do rei Leopoldo e me conformar com o absurdo. E se nada adiantar, vou ter que recorrer ao Judiciário, que, reclamam, está lento. Lento pelas bobagens que podiam ser resolvidas pelas instâncias administrativas ou pelas agências regulatórias e não o são. Lento, mas posso atestar, por ofício e com orgulho, funciona. Lento, aliás, porque funciona. Neste país, só ele funciona!”
Acho que minha amiga está coberta de razões. Somos mesmo um povo que não se levanta, se dá por satisfeito com o pouco de consideração que a burocracia lhe devota. Pelo que viajei, sei que o Estado funciona em diversas partes do mundo. Nos Estados Unidos, haja vista o caso Strauss-Kahn nos dois sentidos, descontado o “espetáculo” do promotor (que lá é sempre candidato a algum cargo eletivo). Funciona bem demais na Noruega. Aqui é diverso. E ainda há gente que acredita no Estado máximo, que é estatista e endossa cada vez mais a sua presença na sociedade. Sei que não se vive sem o Estado. Mas que seja mínimo para ser suficiente. Dá-lhe Paula!
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