Os relatos bíblicos são contraditados por fontes gregas, egípcias, babilônicas, hititas e cananeias
A Bíblia é lida diariamente sem respeito ao tempo histórico das vicissitudes, cantos e louvações ali narrados. São livros escritos a dezenas de mãos, em vários momentos, em lugares diferentes e, sobretudo, em línguas mortas diversas, vertidos para dezenas de línguas vivas, com alto teor de polissemia: hebraico, aramaico, grego e latim. São inúmeras suas erronias e incongruências, sem falar nas glosas, emendas e remendos sofridos ao longo do devir histórico, segundo as conveniências de seus redatores.
Mas os crentes dos credos judaicos, cristãos e muçulmanos, leem as bíblias (Velho e Novo Testamento) como se elas tivessem sido feitas num só dia, ditadas por Deus, e sobre cada versículo ouvem as mais díspares explicações, interpretações e versões por parte dos sacerdotes, conforme seus credos e o sabor das circunstâncias.
O presente ensaio suscita o espírito crítico do leitor para um fenômeno político ímpar, quando a realeza de Judá resolveu “descobrir” a Sefer Torah transmitida oralmente ao povo. Um movimento político-religioso, que os estudiosos denominaram de “deuteronomista”, escreveu o texto e disse ao povo que fora descoberta “a palavra de Deus” (escrita por eles mesmos) e que teria sido entregue a Moisés. Esse brilhante ajustamento reúne cantos, salmos, mitos, histórias, episódios, tradições orais e transforma-os na Sefer Torah para impressionar o povo, com o intuito político de nele inculcar fé inabalável e construir na região o invencível reino de Judá, sob os auspícios de Javé. (O povo era, então, analfabeto. Em todo o Oriente Próximo, os povos semitas ensinavam as leis, poesias e tradições pela repetição oral diária, como ocorre até os dias de hoje nas “madrassas” islâmicas.) Esse ponto é fundamental. O movimento deuteronomista “inventou” um passado maravilhoso para influenciar os judeus nos séculos 7 e 6 a.C. e projetar o futuro. O que conhecemos hoje como Velho Testamento foi gestado nesse período.
Entretanto, a Torá não está solitária. Em 1820, Jean François Champollion decifrou os hieróglifos egípcios. Ficamos sabendo de uma estrela de vitória do faraó Meneptah em 1207 a.C., em razão de grande triunfo sobre um povo que se autodenominava “Israel”. Em 1 Reis 14:25 está dito que o faraó Sesac, identificado como Sheshonq I, da 22ª dinastia egípcia (945 a 924 a.C.), marchou até Jerusalém para exigir tributos (vassalagem) no quinto ano do reinado do filho de Salomão, segundo registro da campanha na parede do templo de Amon, em Karnak. O fato mostra que o Egito era a potência dominante nessa época e que Israel pagava tributos para manter sua autonomia, mesmo nos tempos gloriosos do reino único – quando ainda não existia Israel, ao Norte, capital Samaria; e Judá, ao Sul, capital Jerusalém, ambas na região montanhosa da Cananeia.
Os relatos bíblicos são contraditados por outras fontes: gregas, egípcias, babilônicas, hititas e cananeias; sem falar no estudo comparatístico das fontes históricas e os registros arqueológicos que, com a linguística, trazem à luz do sol as verdades ocultas. Só para exemplificar, a partir de 1840, arqueólogos dos Estados Unidos, Alemanha, França e Inglaterra desenterraram cidades grandiosas na Mesopotâmia, tais como Nínive e Babilônia. Alguns reis bíblicos e a época em que reinaram foram então descobertos, como os reis de Israel: Amri, Acab e Jeú; e os reis Ezequias e Manassés, de Judá, entre outros. Pela primeira vez, foi possível corrigir erros e ajustar os relatos históricos daquelas épocas a partir de várias fontes, situando Israel na política da região.
Arquivos mesopotâmicos e egípcios mais remotos foram decifrados, como os manuscritos de Mari, Tell El-Amarna e Nuzi, hoje mundialmente reconhecidos como fontes fidedignas. Eles permitiram conhecer o panorama do antigo Oriente Próximo e os fatos dessa época (entre 2000 e 1150 a.C.) como, por exemplo, a razzia dos chamados “Povos do Mar” que arrasou a Cananeia, a grande cidade de Ugarit e as demais cidades costeiras. Em áreas próximas de Israel, outros tantos achados e feitos de grande importância, como o da vitória do rei moabita Mesha sobre Israel na Transjordânia (testemunho externo da guerra entre as mesmas partes, relatado em 2 Reis 3:4-27). Em 1993, no sítio de Tel Dan, descobriu-se um registro de vitória do rei arameu Hazael sobre o rei de Israel ou o rei da Casa de Davi, no século 9 a.C. Sendo uma inscrição moabita, oferece testemunho extrabíblico do fato.
Com o Estado de Israel – reimplantado no século 20 d.C. –, a arqueologia na região cresceu extraordinariamente. Os estudiosos mapearam toda a região desde a Idade do Bronze e sua civilização urbana (3500 a 1150 a.C.), bem como sua transformação em Estados territoriais no período seguinte, a Idade do Ferro (1150 a 586 a.C.). Desde então, a conclusão unânime dos estudiosos laicos foi a de que a Bíblia antiga não era nenhuma fantasia, mas tais eram as contradições entre os achados da arqueologia e seu texto que não se poderia mais vê-la como uma fonte absolutamente segura.
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