Mito e história nunca se casaram de maneira tão duradoura quanto na criação da religião monoteísta judaica
Existe no Antigo Testamento a repetição da Torá dos judeus. No Novo Testamento não há. São narrativas apostolares sobre a vida de Jesus, o Sermão da Montanha e as cartas de São Paulo. Aí está a essência do cristianismo.
Jack Miles (Deus – Uma Biografia. Ed. Cia das Letras. Tradução de José Rubens Siqueira. 1997.), sendo ex-jesuíta, acha que os cristãos se apropriaram de uma narrativa religiosa alheia ao incluir no códex cristão a Torá.
“É estranho dizer isso, mas Deus não é nenhum santo. Muitas objeções podem ser feitas a seu respeito e já houve várias tentativas de melhorá-lo. Muitas coisas que a Bíblia diz a seu respeito raramente são pregadas no púlpito porque, se examinadas mais de perto, seriam um escândalo. Mas, mesmo que só parte da Bíblia seja ativamente pregada, nenhuma de suas partes é contestada. Em qualquer página da Bíblia, Deus continua sendo o que sempre foi: o original da fé de nossos pais, cuja imagem ainda vive dentro de nós como um ideal secular difícil, mas dinâmico” (Ob. cit. pág. 17).
(…)
“O começo e o fim da Bíblia hebraica não estão ligados por uma narrativa única, contínua. Bem antes do meio do texto, a narrativa se quebra. O que vem em seguida são, primeiro, discursos pronunciados por Deus; segundo, discursos pronunciados para ou, até certo ponto, sobre Deus; terceiro, um prolongado silêncio; e, por último, uma breve retomada da narrativa antes da coda de encerramento. (…) Na Bíblia hebraica, porém, depois que a ação cede terreno ao discurso, o discurso por sua vez dá lugar ao silêncio. As últimas palavras de Deus são as que ele diz a Jó, o ser humano que ousa desafiar não seu poder físico, mas sua autoridade moral. (…) Qual é o significado dessa longa penumbra da Bíblia hebraica, em seus 10 últimos livros? A penumbra não é seguida de trevas: Deus não morre. Mas ele nunca mais interfere nos assuntos humanos e, implicitamente, fica cada vez mais claro que não se espera mais nenhuma intervenção dele. O povo escolhido, tendo retornado do exílio, louva-o mais do que nunca quando a sua vida termina – mais, decerto, do que quando ele derrotou o Faraó ‘com mão poderosa e braço estendido’, levando esse povo pelo deserto até a terra prometida. Naquele tempo, eles eram recalcitrantes e Deus dizia, amargamente, que tinham ‘dura cerviz’. Agora são devotos, mas ele nada mais tem a dizer para eles ou sobre eles – nem para ou sobre nada ou ninguém mais. Deus e seu povo estão bela e comovedoramente reconciliados quando a Bíblia hebraica chega ao fim, e não se pode acusar de blasfema a afirmação de que sua própria vida terminou” (Ob. cit. págs. 22/23).
O leitor haverá de perdoar a minha insistência. Mas é que não me contenho ante a brilhante análise de Miles. Os israelitas se tornaram estridentemente religiosos javistas, não pelas maravilhas operadas por Javé, mas pelo relato delas. Foi Josias, o grão-sacerdote Hélcias e a “vidente” Hulda que criaram a religião monoteísta judaica, numa tarefa realmente fantástica. Nunca o MITO e a HISTÓRIA se casaram de maneira tão duradoura. Basta dizer que avassalou, depois de Constantino, Roma; e, consequentemente, o mundo ocidental.
Robert Alter escreveu a respeito: “Pouco se ganha, acredito, ao conceber o Deus bíblico, como faz Harold Bloom, como um personagem humano – petulante, teimoso, arbitrário, impulsivo ou o que seja. O que os autores bíblicos repetem todo o tempo é que não se pode entender Deus em termos humanos”.
Mas Alter exagera. “Uma das primeiras afirmações que todo escritor bíblico faz sobre Deus é que a humanidade é a imagem de Deus – um inconfundível convite a atribuir algum sentido a Deus em termos humanos. (…)” (Ob. cit. pág. 25). As premissas de Miles são bem expostas e devem ser observadas, sob pena de se não compreender a sua exposição magistral.
Voltando à objeção que Miles faz a Alter, cabe dizer que muita gente estupefata afirma que somente os israelitas primitivos chegaram à concepção monoteísta. O argumento é falso, por três razões:
Primus – A concepção monoteísta primeira é a de Akenaton no Egito, e do persa Zaratrusta.
Secundus – Embora Miles diga que Javé é um amálgama de vários deuses cananeus, no que está certo, é preciso realçar que o MONOTEÍSMO JUDAICO resulta mais de um processo dialético do que de uma refinada concepção teórica (no fundo, em todos os politeísmos, o egípcio, o persa, o hindu, há a existência de um Deus-Pai, de onde vieram todos os outros).
Tertius – O processo dialético a que me refiro está em opor Javé aos outros deuses estrangeiros. O monoteísmo judaico nasceu de um confronto dialético com outros deuses cananeus comuns, daí a insistência em dizê-lo o MAIOR, O MAIS PODEROSO, O VENCEDOR, embora ele tenha fracassado quase sempre, menos no êxodo (que não existiu). Ele é fruto do movimento “Javé sozinho”, ao tempo do rei Josias.
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