Fazer Javé triunfar sobre seus irmãos que formavam o panteão cananeu de El, o Zeus semita-cananeu, foi uma verdadeira guerra
Para o mundo ocidental judaico-cristão, o monoteísmo é a grande verdade que os judeus nos legaram. Mas essa ingênua percepção da espiritualidade desconhece inteiramente a dialética histórica e política que, através do sincretismo religioso, logrou construir a ideia do Deus único e eterno dos hebreus e islamitas, já que os cristãos são trinitários. Foi grande o amálgama de Deus, povo, etnia, religião, Estado, família e propriedade (até hoje, Israel é um Estado religioso, não laico). Em Israel, grande parte do direito de família é religioso e não civil. Por isso, milhares de casais contraíram matrimônio na ilha de Chipre. O mesmo ocorre no mundo muçulmano xiita, com a religião comandando o Estado. Entre os países islâmicos – assim mesmo por força das ideias seculares de Kamal Ataturk e do exército –, a Turquia é o único Estado legitimamente laico, havendo ali a separação constitucional entre Estado e religião. A lei é civil, em que pese o prestígio do Corão. O Egito fica no meio termo. Os dirigentes emergem do exército.
Outro depoimento de peso, em prol da tese ora exposta por nós, é o de John Bowker:
“Quando o Altíssimo partilhou as nações, quando dividiu os seres humanos, fixou os limites dos povos de acordo com o número de deuses; a porção do Senhor era seu próprio povo, Jacó é a sua parte.” O Altíssimo é El.
“(…) A guerra terrena travada para conquistar a Terra Prometida reflete-se numa disputa celeste, uma vez que Yahvé invadiu os domínios de El, Deus supremo, e assumiu suas funções até que, no final, eles se tornassem tão indistinguíveis que El seria um mero nome de Yahvé – Aquele que é Deus. Essa foi uma grande mudança. Anteriormente, Yahvé era apenas um dos muitos deuses inferiores a El, responsável por uma área específica, conforme descrição do Deuteronômio 32, 8 (texto original). O Deus altíssimo divide as nações do mundo de acordo com o número de deuses menores (elohim), e deu uma nação para cada um.” (Para os islâmicos, 100 nomes tem El ou Aláh.)
Os autores dos textos posteriores e oficiais, chamados de massoretas, chocaram-se com o aparente reconhecimento de outros deuses. Tanto que chegaram a alterar a passagem para ‘…de acordo com o número dos filhos de Israel’. No entanto, o texto original captura a antiga compreensão de modo inequívoco. O salmo 82, no qual Yahvé denuncia os outros deuses, revela com a mesma clareza a antiga relação entre Yahvé e El. O primeiro verso parece estranho e diz, literalmente: ‘Elohim preside a grande congregação de El, para julgar no meio dos deuses [Elohim]’ (Salmo 82,1). Mas vale lembrar que esse salmo advém de um trecho do qual o nome de Yahvé foi extraído e substituído por Elohim. Assim, o verso originalmente diz: ‘Yahvé preside a grande congregação de El, para julgar no meio dos elohim [outros deuses]’.
A Bíblia como um todo mostra como Yahvé, além de invadir o domínio de El e de outros deuses, os suprimiu para sempre. Yahvé tornou-se, então, tudo o que os deuses podiam ser. Representar deuses em forma pictórica ou de entalhe era severamente condenado, sob acusação de idolatria – entendida como devoção não a Deus, mas a ídolos mortos e inúteis, incapazes de realizar qualquer coisa (ver, por exemplo, Salmo 115, 3-8; Isaías 46).
O shema adquiria, assim, todo o sentido: Yahvé nosso Elohim é o único Yahvé. O Deus da vida ergueu-se a partir da morte dos deuses. Tratou-se de uma imensa e conflitante batalha na imaginação humana e não foi uma etapa fácil de ser atingida. Mas, depois de iniciada, fez-se claro que Deus merecia o louvor e a adoração dos homens.
Nos capítulos do livro de Josué que descrevem a conquista (5, 12, 24), Deus aparece como um feroz predador que arrasa o que está no caminho. A ira é um elemento recorrente na Bíblia. As palavras em hebreu para designar o sentimento têm, sobretudo, conotação física (ventos violentos, calores intensos, inundações) e em geral são mais atribuídas a Deus do que aos seres humanos.
É melhor esclarecer que, na Antiguidade, direito e ética se continham no interior dos discursos dos sacerdotes ou nos pergaminhos religiosos para melhor controlar as sociedades humanas primavas, superada a época das tribos dispersas.
Por que “um povo” e o “seu Deus”? Justamente porque, para ter credibilidade, adotou-se o artifício genial da revelação. Deus, ele próprio, revela-se a um povo particular e com ele celebra uma aliança, relegando o resto da humanidade. Enquanto outras religiões não se importam com as religiões dos outros, o judaísmo – a partir do movimento “Javé sozinho” – é militante, irascível, beligerante, implacável e apologético. Fazer Javé triunfar sobre seus irmãos que formavam o panteão cananeu de El, o Zeus semita-cananeu, foi uma verdadeira guerra.
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