É significativo que não se possam traduzir facilmente em inglês conceitos tais como “culpa” e “prejuízo”, sendo o conceito-chave do direito inglês dos torts a expressão “perdas e danos”
Segundo René David, no livro Os grandes sistemas do direito contemporâneo (São Paulo: Martins Fontes, 1986), os juristas da família romano-germânica interrogam-se no caso dos contratos celebrados entre ausentes se convém aceitar a teoria da emissão ou da recepção: celebrar-se-á o contrato quando a aceitação é enviada ou quando é recebida pelo oferente?. Essa maneira de colocar a questão afigura-se, do ponto de vista de um jurista inglês, muito geral; regras diferentes podem parecer justificadas desde que haja a preocupação de fixar a data ou de determinar o lugar onde o contrato é concluído, ou através de recurso a um intermediário (a administração dos correios), ou de modo direto (por telefone ou telex).
Em matéria de responsabilidade delitual na Inglaterra, não se pensará sequer emestabelecer princípios gerais, tais como os que se encontram nos códigos do continente europeu e especialmente no código civil francês. Os diferentes tipos de culpa e de prejuízo, as várias circunstâncias em que um dano se produziu exigem regras próprias. Ignorando a noção abstrata de culpa, os juristas ingleses conhecerão apenas as diferentes espécies de comportamentos ilícitos, uma variedade de torts, e, no caso do tort de negligência, interrogar-se-ão se existe ou não na circunstância uma obrigação de vigilância (duty of care) a cargo do demandado. Ao encararem a questão da responsabilidade do proprietário de um prédio, estabelecerão regras distintas, que levem em conta se a vítima do dano tinha ou não o direito de se encontrar no prédio, se aí se encontrava a convite do demandado, se se tratava de um adulto ou de uma criança, se o acidente deveu-se ou não à reparação no prédio etc.
Relativamente aos diferentes tipos de delitos civis, considerar-se-á igualmente a natureza do prejuízo: a reparação por danos patrimoniais ou danos morais, em virtude de prejuízos causados a uma pessoa ou a uma coisa, ou ainda a um patrimônio considerado globalmente, rege-se por normas substancialmente diferentes. É significativo que não se possam traduzir facilmente em inglês conceitos tais como “culpa” e “prejuízo”, sendo o conceito-chave do direito inglês dos torts a expressão “perdas e danos” (Damages). As fórmulas gerais dos nossos códigos destinam-se mais, aos olhos dos ingleses, a ser preceitos morais do que a estabelecer verdadeiras regras de direito; a legal rule inglesa, pelo contrário, põe em causa uma casuística que, por vezes, se tornou tão sutil e complicada que necessitou da intervenção simplificadora do legislador.
Por isso mesmo, talvez, um inglês desabusado, em impiedosa autocrítica, chamou o seu direito de “ímpia barafunda”, atitude absolutamente insólita (Apud CRETELLA JÚNIOR, José. Direito e administração comparados. Rio de Janeiro: Forense, 1990).
O que caracteriza mesmo o direito inglês é o papel do juiz. A lei escrita é promulgada pelo Parlamento do reino. Mas não tem a força que lhe quis imprimir, por exemplo, o direito francês. Os juízes, é certo, aplicarão a lei, mas a norma (que está “dentro” da lei) só será admitida como incorporada ao direito inglês quando tiver sido interpretada e aplicada pelos tribunais. A regra de direito prevalecente é a regra jurisprudencial e nela estará incorporada uma tradição de mil anos de experiência e história.
Os grandes temas institucionais e os grandes princípios jurídicos que asseguram os direitos das pessoas, os remédios às liberdades e os limites do poder do Estado, de modo singular, são diuturnamente repassados pelo aparato jurisdicional inglês. Por ser assim, o controle da constitucionalidade ou da legitimidade axiológica e ética das leis é feita pelo Judiciário inglês, todos os dias, com revigorado denodo, com o auxílio prestimoso dos advogados (que se reúnem em colégios privados).
Há um excerto de Cappelletti acerca dessa gestação histórica, tão característica da Inglaterra, ligando a experiência inglesa ao instituto de controle jurisdicional das leis, depois surgido nos EUA, tese, aliás, adotada por centena de autores.
Trata-se do fato de ser o direito inglês dúplice na sua formação. Quando Guilherme, do Condado da Normandia, na França, invadiu a Inglaterra, impôs a língua francesa e as leis francesas para a elite, seus comandantes conquistadores. O povo prosseguiu com seus costumes legais saxões e dinamarqueses.
Sobre a base desta tradição se fundou, exatamente, a doutrina de Edward Coke sobre a autoridade do juiz como árbitro entre o rei e a nação, doutrina por ele precisada especialmente na ocasião de sua luta contra James I Stuart. Contra o rei, que afirmava ser dotado de inteligência como os juízes, seus delegados, e pretendia, consequentemente, poder exercitar pessoalmente o poder judiciário, Coke respondia que tão só os juízes podiam exercitar aquele poder, sendo instruídos na difícil ciência do direito.
Digo essas coisas, pois os bolsonaristas fanáticos gostam de chamar o STF de “bandidos de toga”. E isso dá cadeia. Acautelem-se.
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