A missão do jurista é introduzir nos sistemas jurídicos a axiologia do justo e do igual em escala planetária. Não estaremos fazendo nada sublime, apenas uma tarefa cotidiana.
Seria imprudente não ver que a moral egoísta e utilitária (“não faças aos outros aquilo que não queres que te façam”) deixa pouco a pouco de se basear no dever para se firmar no amor. Compte Sponville, autor do mais importante livro sobre a ética neste fim de século, faz-nos ver maravilhados que a moral, ao invés de constranger, pode nos tornar felizes, até mesmo sem religião. O seu livro se intitula O pequeno tratado das grandes virtudes, e o cerne da sua prédica escora-se em uma máxima, profunda e bela: “O que fazemos por dever não fazemos por amor, e o que fazemos por amor não fazemos por dever”. O amor é, então, a maior de todas as virtudes. Quanto à religião, foi preciso esperar a teologia do amor e do perdão contra a da culpa e do castigo para entender o fenômeno religioso mais como alegria pessoal do que como estrutura implacável de poder normativo com base em ameaças. Teilhard de Chardin, que foi cientista e teólogo católico, jamais negou que nós somos o elo final e pensante da evolução das espécies e que nossos corpos e mentes resultam da primeira molécula surgida no planeta no dealbar da vida, depois de longo processo evolutivo. Nem por isso deixou de ver, na evolução, uma formidável epopeia; viu o mais complexo surgindo do mais simples e o espírito resultando da carne num plano majestoso, cuja razão humana, imersa em profunda vertigem, não explica, mas a alma pressente: a caminhada da consciência para o ponto ômega, para Ele que, fora do tempo, funda o homem e a história. Haverá um tempo em que igrejas e doutrinas morais e religiosas serão, talvez, desnecessárias, e o homem estará como o centro.
Mas o que estará reservado ao direito? Qualquer olhar que lancemos ao passado, já vimos, deixa-nos lívidos de pavor: penas infamantes, torturas, arbítrio, medo, angústia, as galés. Grandes são as diferenças entre os direitos de antanho e os de hoje. A escravidão e a desigualdade eram comuns. O tributo, castigo e opressão, poder do governante. O processo, tosco; a Justiça, parcial; o sistema de provas, irracional. Até mesmo em Roma, sede primeira da ciência jurídica, houve um tempo em que o credor podia lançar as mãos sobre o devedor, reduzi-lo à escravidão ou jogá-lo do alto da pedra terpeia para que morresse à vista de todos.
É verdade que, hoje em dia e por toda parte, injustiças sociais e leis injustas nos fazem descrer do homem. A condição feminina, para não nos alongarmos noutras injustiças, mormente no Oriente, em que pesem todos os avanços, é, ainda, profundamente discriminatória, para dizer o mínimo. Os direitos das minorias, quando não são objeto de desprezo ou mofa, nem sequer são reconhecidos. Racismo e misérias humanas parecem indiferentes ao direito, que muitas vezes até os estimula. A África do Sul e o Sr. Mandela. E o que dizer dos direitos dos não heterossexuais? Tudo isso, no entanto, está em mutação. Como linhas longamente convergentes destinadas a se unir em algum ponto do futuro, direito, Justiça e igualdade finalmente serão um plexo pleno e inextrincável.
Por isso os juristas, os operadores do direito, que é ciência e arte, devem ser pessoas de fé, cientes de sua missão. Devemos servir aos valores humanos: liberdade, pluralismo, humanismo, a pessoa como centro de respeito (todas as pessoas), dignidade, igualdade, verdade e paz, acima de povos, raças, credos, religiões e pátrias. A missão do jurista, a par de conhecer o direito, é introduzir nos sistemas jurídicos a axiologia do justo e do igual em escala planetária. Não estaremos fazendo nada sublime, apenas uma tarefa cotidiana.
Para encerrar esta parte, à guisa de síntese de tudo quanto foi dito sobre a ambiguidade do direito, a um só tempo opressão e caminho para a liberdade e a justiça, colacionamos ilustrativamente os nomes de dois conhecidos juristas. De um lado, o célebre professor da Universidade de Viena Hans Kelsen, que advoga uma perspectiva absolutamente positivista: o objeto da ciência do direito é a norma jurídica (qualquer norma de qualquer sistema jurídico, legítimo ou não em sua formação, justo ou não em seu conteúdo) – nesse sentido, expressivo o título de seu mais famoso livro: Teoria pura do direito. Sob outro ponto de vista, contraposto, exsurge o notável recifense Lourival Vilanova, de cujo pensamento se depreende que o direito vem de envolta com a história e as suas tormentas, numa busca obstinada de igualdade, segurança e justiça, ou seja, atento a determinados valores, pois, se a norma é dever-ser, é dever-ser de algo.
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