Apreciamos uma democracia permissiva e ao mesmo tempo o domínio da ordem e os representantes fardados do poder
Guardo comigo um livro chamado Anônima intimidade – trata-se de poesia – com uma dedicatória afetuosa e simples, despida de vaidade: “Ao Sacha Calmon, amigo velho, com o abraço de …”.
Ao Carlos Ayres Britto coube fazer o prefácio. Às tantas diz com graça e estilo sobre o autor da obra: “Falo de um que recorre a hipérboles (“acumulam-se em mim séculos de dor”, metáforas (“flago o momento e imobilizo o fato”) neologismo (“potrancado, abraçante”); oximoros (“a quem minha memória deve armazenar?”) E termina dizendo: “Que ele venha para tomar merecido assento na irmandade dos que fazem da palavra escrita um hino de louvor à estética e a mais santa reverência ao humanismo”. Belo texto.
Vem a calhar dar à estampa mais poesias que no livro moram, a revelar, talvez, algumas fagulhas da alma do autor: É o caso do título aeroporto: “Não disseram nada. Apenas se cruzaram. Vieram de longe ou dali mesmo. Mas iam para longe, carregando dois fardos, suas malas e suas vidas”.
É um modernista já se vê. E isso se confirma no título de “ciclo fatal”, transbordante de atualidade para quem está às vésperas dos 80 anos de vida: “O velho acumula histórias, ouvidas e vividas, conta-as e repete-as. E cansa os jovens, que não querem ouvi-las. Querem vivê-las… para depois contá-las. E, também não serem ouvidos porque ficaram velhos”.
Chama-nos atenção, contudo uma poesia com odor de religião ou melhor de apelo em forma de oração. Ocorreu quando o autor volteava seus 72 anos, há sete anos:
“Quando eu nascer, Senhor, daqui a quatro horas, pela sexagésima segunda vez, fazei com que eu nasça um outro homem.
Fazei, Senhor, com que a vida anterior às sessenta e duas vezes que nasci seja apenas referência para a existência que virá depois.
Que eu seja, Senhor, melhor. Que eu viva para os outros, não para mim. Que eu ame, Senhor, quem me ama. E também quem me detesta. Até os que me ignoram incluídos os que não me conhecem.
Que eu ame a todos, Senhor, que eu seja bom sem fazer da bondade uma virtude, nem pretensão, mas que seja conduta natural. Que eu seja honesto, Senhor, sem fazer da honestidade uma pregação.
Que eu compreenda os maus, os desonestos, os drogados e os que traficam drogas, os violentos e os insatisfeitos. Que eu seja capaz, Senhor, de, com bondade, extensão da Sua, fazê-los bons, honestos, não drogados, pacíficos e satisfeitos.
Enfim, Senhor, que eu seja, no mundo, a revelação da Sua presença. Se não for assim, Senhor, melhor que eu não nasça pela sexagésima terceira vez!”
Agora o nome do poeta: Michel Temer. Ex-presidente da República Federativa do Brasil, professor de direito Constitucional e bom cristão.
Tenho por ele – nada lhe pedi nem ele me ofereceu – simples razões de amizade, faz mais de 40 anos.
Se me permitirem, a sua “espetaculosa prisão” para um homem de classe média, pois se largas posses tivesse estariam escancaradas, me deixou profundamente irritado, mais do que sempre fui, como advogado e juiz federal, com o Ministério Público dessa infeliz república em que vivemos, e que não se dá ao respeito fazendo pouco da sobriedade e cautela que os costumes éticos e políticos impõem às nações civilizadas.
São possuídos pelos demônios da mais suspeita das moralidades, a dos inquisidores de almas. Usam os agentes armados do Estado, e sem reverências expõem as reputações alheias (talvez o nosso passado histórico explique a monarquia prolongada, única nas Américas, a inquisição católica, a presunção exagerada de culpa dos representantes do Poder Civil a fazer de militares e procuradores os “justiceiros” da sociedade dos quais sempre desconfiamos, evidente contradição).
Relembro aqui Cícero, o romano: “Muitas leis? Péssima república!”.
Aqui o presidente, o Poder Legislativo e até a cúpula do Judiciário e certos juízes justiceiros nos transformam numa República de Opereta. Que venham as sátiras, nos teatros e no cinema, para nos abrir os olhos. Estamos brincando com a nação, com mortes morais e obscenidades políticas, sem o mínimo respeito pelas reputações alheias, como se as pessoas e suas famílias fossem apenas nomes, sem corpos nem almas.
Somos um povo contraditório, honesto e “esperto”, às vezes, em evidente contradição, qualidades por todos respeitadas.
Apreciamos também uma democracia permissiva e ao mesmo tempo o domínio da ordem e os representantes fardados do poder, sem que o país cresça.
Não basta o historiador para nos explicar. Uns sociólogos e muitos psicólogos se fazem necessários para a explicação de nossos hábitos e contradições. Tivemos um presidente sensível e polido e que fez a economia crescer, nos tirando da recessão. Agora escolhemos outro desabrido e brigão. Tomara que ele dê certo. Entre o sabre ou poesia, a nação espera pressurosa. São pessoas simples, mas são pessoas (e votantes).
Mas o que nos falta mesmo é educação para sair do terceiro mundismo em que estamos imersos. Valha-nos Deus por tanto sofrimento. A semana é santa.
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