Estamos mais próximos, pela aparência, dos grandes símios do que dos seres invisíveis (tronos, arcanjos e querubins) que nossas crenças criaram.
Ensinaram-me desde criança a frase cristã: “Ama teu próximo como a ti mesmo”. E para completar, outra frase leiga de ajuda se juntava àqueloutra: “Não faças aos outros aquilo que não queres que te façam”. É dizer, aja sempre em favor e não contra o teu próximo, por autoproteção.
Esses apelos éticos perpassam todas as religiões e o ensino moral da humanidade. Recentemente, passei a imaginar que o “próximo” não é propriamente o “outro”, mas as pessoas que me estão próximas, os “outros” que estão “próximos”, que agem e interagem comigo, pois eles é que me podem fazer bem e mal. Os mais distantes, são ilustres desconhecidos. Possivelmente, jamais os verei ou conhecerei. Não posso amá-los em abstrato, embora possa ajudá-los em suas agruras. Penso nos refugiados que buscam a Europa civilizada, mas fechada no seu egoísmo.
Os padres diziam: “Cuide-se, Deus tudo vê. Nenhum fio de cabelo cai sem que Ele saiba”. A tese de que Deus é um vigilante, onipresente e onipotente, é eficaz para nos obrigar à retidão. Noutra oração invocamos o Eterno, o que nunca teve princípio e jamais terá fim, para “não cair em tentação”, acentuando a nossa inata imperfeição. Quem nos fez? Para quê?
Depois de ler o padre Teilhard de Chardin no seu O fenômeno humano, soube que a nossa marca é estar ciente de nós e dos outros! Dei-me conta de que somos a flecha que aponta para o infinito, no longo caminho, que vem lá de trás, desde os primeiros seres unicelulares até o complexo ser humano contemporâneo. Neste ponto, a primeira aporia surge. Nos primórdios, depois que a Terra, então uma bola de fogo fumegante, parou no espaço, a uma distância adequada do Sol que orbita, o calor intenso gerou chuvas que devem ter parecido eternas. A superfície da Terra aparece após milhões de anos. O surgimento da Terra-Mãe, Demeter na tradição grega, até que nela as condições permitissem o surgimento – milagre fantástico – dos primeiros seres vivos, os unicelulares, se passaram milhões de anos. Houve um início ou vários inícios para os unicelulares aqui, ali e acolá, ou não? Jamais saberemos. O mundo mineral contraiu-se tanto que, de repente, um ser pulsante, a célula, surge nos imensos oceanos, fruto de uma reação química improvável, mas que aconteceu. Eis a vida!
Daí em diante, dá-se a evolução. E o que é simples, o organismo unicelular, só faz transformar-se em seres cada vez mais complexos. A arqueologia dos fósseis notícia esse evolver.
Vamos acelerar o filme: a vida se espalha como um feixe, em várias direções, mas só uma ponta culmina, muda de estado, acrescenta-se de algo mais. Os demais ramos do feixe, outro mistério, estancam ou desaparecem.
Olhemos com cuidado. De um certo tempo para cá, os tenteios da evolução fixaram um padrão para parte do mundo animal, a tetrapodia. Basta olhar uma zebra, um cão, os macacos e nós: temos quatro membros, tronco, cabeça (e cérebros).
Sim, eu sei, um vírus muda, mas não se acrescenta, sua mutação se dá na prisão que a evolução lhe impôs. Eles não se transmutam. Os caninos e os felinos – que são frentes – sofrem mutações, mas não mudam de categoria. Primatas e chimpanzés começaram a criar macacos e hominídeos em profusão há 800 mil anos, mas somente a haste mais alta dos hominídeos gerou algo novo, justamente a espécie humana. A flecha da evolução sempre ocorre no filo mais avançado, os outros permanecem fechados em si mesmos, para sempre. A evolução das espécies é incessante. A certa altura, entre os mamíferos superiores, outra revolução acontece. Aqueles que conseguiram ficar em pé descaem o queixo, o que propicia aumentar os cérebros. Os hominídeos se fazem os mais inteligentes entre todas as espécies e dominam o mundo.
A ciência descobre que o dilema entre o unifiletismo (um único casal) e o polifiletismo (centenas de primatas) é falso. Os primatas surgem na face da Terra por toda parte até serem considerados da espécie humana. Antes do Homo sapiens, até uns 150 mil anos atrás restrito ao Sudoeste africano, já havia Homos nas margens do Yangtzé (Rio Amarelo) e os neandertais tinham conquistado a Mesopotâmia, partes da Europa e Ásia. Uma nova onda (os cromagnons) se espraia pelo mundo e não apenas se cruza sexualmente como tende a suprimir os seus antecessores. Neste ponto, o Homo sapiens está deixando a África com um grau de cefalização bem maior, fruto do seu hábito de caçador-coletor-pescador, em lugares de grande provimento. Ganham a Terra (seleção natural).
Essa epopeia tomou-nos uns 800 mil anos, segundo atestam paleontólogos e antropólogos. Estamos mais próximos, pela aparência, dos grandes símios do que dos seres invisíveis (tronos, arcanjos e querubins) que nossas crenças criaram. A capacidade de idear e perceber o infinito nos faz olhar para o mistério da vida em busca do dedo de Deus, mas sem o criacionismo ingênuo do Jardim do Éden. É que a evolução parece ter um sentido!
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