É um direito humano fundamental determinar como e quando morrer, e dever do Estado assisti-lo? O debate está aberto
Nascemos sem pedir em qualquer parte do mundo e encontramos nossos ascendentes e seu meio socioambiental: língua, região, religião, tradições, costumes, regras, raça, guerra ou paz, riqueza ou pobreza, conforme sejam as circunstâncias.
Nascer, portanto, é basicamente ato biológico, cujo único antecedente comprovável terá sido a cópula dos nossos pais. Como consolo, cada nascituro é um campeão nato, ganhou a corrida para entrar no óvulo materno. Que muitos sejam natimortos entra na conta da álea da natureza, que jamais é perfeita. A prova são bebês que nascem sem cérebro, deficientes mentais ou com defeitos naturais.
O mistério da vida, do mal, do sofrimento e do universo onde ela acontece, sem o nosso prévio consentimento – repita-se ad nausean –, se por um lado fascina, por outro obumbra pela evidência brutal do real. O mundo onde vivemos e todos os fenômenos que nele acontecem, como a dor e o prazer, as guerras, os desastres naturais, o ódio e o amor, são reais (nada é ilusão ou “maya”, no dizer dos budistas).
O incessante e constante fazer dos homens no breve curso de suas vidas efêmeras, suas dores e sofrimentos de diversas ordens têm nos levado a atribuir o existir ao Totalmente Outro, o que, diferentemente de nós, nunca teve princípio e jamais poderá ter fim, pois está necessariamente fora do tempo, do espaço e da matéria.
O pensamento místico tem considerado, desde há muito tempo, apesar da nossa parecença com outros seres viventes de espécies próximas da nossa, a imortalidade do nosso imo irredutível, o espírito ou alma, ambos inefáveis. A ciência pontua à sua vez a absoluta estranheza do motor incognoscível do universo. Ele é referido, mas não o vemos, somente o imaginamos seguindo as tradições, e são muitas, que nos são inculcadas após nascermos.
Contudo, se nascemos, estamos destinados à morte. Kierkegaard, existencialista cristão, cunhou a frase “O homem é um ser para a morte”. Com efeito, nada é tão certo como ela. Ninguém, entretanto, tem o direito de nos tirar a vida, a não ser nós próprios, embora a lei às vezes nos obrigue a perdê-la (pena de morte), inclusive pela razão de não querermos matar nossos semelhantes em tempos de guerra (pena capital por corte marcial).
Vem ao caso essa introdução em face da comovente notícia que nos chega da Bélgica, confirmando a tese de um grupo de juristas, que afirma ser o direito de morrer assistido o último direito fundamental a ser conquistado pela espécie humana.
Segundo a reportagem “Eutanásia para jovem deprimida” (Estado de Minas, 7/7/2015) de Rodrigo Craveiro: ‘A vida não é para mim’. (…) A morte não me parece uma escolha. Se eu tivesse uma opção, escolheria uma vida suportável. Mas tenho feito de tudo e não fui bem-sucedida.’ Acometida de uma grave depressão que há três anos a mantém internada numa clínica psiquiátrica, Laura – uma belga de 24 anos cujo sobrenome não foi divulgado – concedeu uma entrevista ao jornal local para justificar a decisão que a lançou no centro de uma polêmica. (…) Existe o temor de que a decisão, validada por lei na Bélgica desde 2002, possa estimular pacientes deprimidos a buscar o mesmo destino. Diretor da Divisão de Ética Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de Nova York, Arthur Caplan alerta que o caso de Laura representa ‘uma descida perigosa e assustadora numa ladeira escorregadia’. ‘Uma mulher de 24 anos, com depressão, não merece uma resposta como a eutanásia. O Estado deveria trabalhar com ela para tentar curá-la usando todos os meios possíveis’. O médico holandês Rob Jonquiere, diretor de Comunicações da Federação Mundial das Associações de Direito de Morrer (WFRTDS, pela sigla em inglês) e especialista da Universidade de Leiden, rebate Caplan e lembra que a lei belga se refere às pessoas que sofrem de modo ‘insuportável e irremediável’.
‘Não é preciso estar terminantemente doente para ter direito à eutanásia’, alertou à reportagem. ‘A princípio, mesmo uma grave depressão pode causar sofrimento terrível e insuportável e ser razão para a prática.’ Nos próximos dias, Laura deverá receber uma injeção letal, mesmo sem sofrer de doença terminal. ‘Uma grave depressão pode ser tão debilitante quanto o câncer. Se não for tratável e a pessoa quiser morrer, ela deveria ter essa escolha’, disse o médico australiano Philip Nitschke, diretor da Exit International, organização não governamental em defesa da eutanásia. Acredita que, no caso de Laura, não existem outras opções além da internação permanente. Em março, o rei Filipe da Bélgica sancionou lei que permite a eutanásia em crianças de qualquer idade, acometidas por grave doença. Em média, todos os anos, cerca de 1,4 mil belgas recorrem ao controverso método”.
É injusta a sociedade que obriga a viver quem quer morrer? É um direito humano fundamental determinar como e quando morrer, e dever do Estado assisti-lo? O debate está aberto.
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