A teoria vem sendo aplicada pelos juízes há séculos. Os mandantes de homicídios sempre foram condenados porque as vítimas eram desafetos. O nexo de causalidade era suposto por indícios. A mão criminosa era do pistoleiro, mas a vontade era do seu contratante. Nos EUA, crimes praticados por grupos organizados ou quadrilhas tinham os chefões mandantes e o grupo executor. O que os unia era o objetivo comum. Nas guerras, o estrito dever – “estou sob ordens e se não as cumpro matam-me” (lei marcial), a teoria do domínio do fato foi extrair da cadeia de comando altamente hierarquizada o fundamento para incriminar os altos chefes. Com efeito, o carrasco que decapita, deixa cair a guilhotina, aciona a torneira de gás nos campos nazistas, pilota o Enola Gay a lançar bombas atômicas sobre civis no Japão, captura 50 mil coreanas para serem “escravas sexuais” dos japoneses, explode os diques do Rio Amarelo para afogar 500 mil camponeses chineses, não é propriamente o executor, mas o seu chefe de alto caturno que domina o tempo, o poder, os subordinados e os fatos.
O substrato da teoria do domínio dos fatos é justamente a tradução moderna das presunções “homini” às situações complexas da criminalidade (concurso de pessoas). As presunções em direito são filhas da lógica ou da lei. Há presunção “jure et de jure” ou legal: “A maioridade plena adquire-se aos 21 anos de idade” (evidentemente afastados os incapazes). Há a presunção “juris tantum”, que admite prova em contrário. Exemplo: você tinha 1 mil unidades no estoque em 31/12/2011. Durante 2012, comprou mais 1 mil e vendeu 1,5 mil, conforme as notas fiscais de compras e de vendas. Logo, deveria ter em estoque em 31/12/2012 precisamente 500 unidades. No entanto, restam apenas 150. Concluo que 350 foram vendidas sem nota fiscal (omissão de vendas e dos impostos a elas correspondentes). Prove-me o contrário: que houve enchente que as inutilizaram, que foram furtadas, que as peças estavam defeituosas e foram devolvidas, coisa e tal. A presunção “homini” é aquela que advém da natureza das relações humanas, das coisas que normalmente ocorrem, ou melhor, sobressaem do “conjunto”.
No caso do mensalão, o primeiro ato do criminoso esquema foi dramaticamente encenado por um penalista expressivo, o então deputado Roberto Jefferson, com larga experiência no Fórum do Rio de Janeiro. Quando lhe exigiram explicações e detalhes, sua mente percuciente o fez dizer: “Tem um carequinha lá em Minas Gerais, um tal de Marcos Valério, que anda distribuindo dinheiro”. E mais não disse. Com agir assim puxou o fio da meada. E foi puxando-o que o Ministério Público Federal conseguiu descobrir e provar a existência da rede criminosa que simulava empréstimos e serviços, usando um núcleo financeiro para administrar os recursos desviados do Estado (núcleo operacional), em prol dos fins políticos do Palácio do Planalto, ao tempo em que Lula era presidente (núcleo político), com o objetivo de comprar votos e apoio político no Congresso Nacional, em favor do governo.
Não faz sentido Marcos Valério, o Banco Rural e as agências publicitárias agirem com desenvoltura sem a coordenação vinda do Palácio do Planalto. Lula, a princípio, disse não saber de nada, depois cogitou renunciar e foi demovido do intento; num terceiro movimento pediu desculpas à nação, não assumiu o delito, mas deixou claro o erro e o envolvimento do PT. Fora traído. Tudo isso está nos arquivos da mídia e nos anais da nossa história, não as inventei. Três meses depois – passado o vendaval, com a conivência de Fernando Henrique Cardoso, que achou melhor para o Brasil não fazer o impeachment de Lula (ver o livro de Marco Antonio Villa sobre o mensalão), eis que o presidente encena seu quarto passo e declara que jamais existiu o mensalão e sim “caixa dois”.
Após a aceitação dos embargos infringentes pelo STF e diante de um novo julgamento pelo Colegiado reformado, eis que o ex-presidente, ciente da pouca memória do povo brasileiro e do seu poder transformador, vem repetindo que os políticos do PT envolvidos foram injustamente condenados sem provas. É de se exibir os slides e falas do presidente em cinco momentos diversos do mensalão. É mais fácil pegar um mentiroso do que um coxo. É a maior prova da existência do crime de quadrilha e da existência claríssima de um chefe e de um sub-chefe no palácio presidencial.
Não admitir a culpabilidade dos políticos em julgamento relativamente ao crime de quadrilha, com base na teoria do domínio dos fatos, seria um escárnio, prova acabada de nosso atraso político-institucional, a reafirmação de que somos uma República corrompida, tipicamente “bolivariana”. Roberto Jefferson, além de penalista, é cantor de ópera. José Dirceu – de quem ele disse lhe despertar os mais primitivos instintos – é o regente da maior opereta da história republicana.
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