Terrorismo e direitos humanos

O crime e o castigo de Bin Laden são indiscutíveis. Discutível é o modo como foi morto.

O terrorismo, seja de grupos ideológicos, seja de bandos criminosos, seja de facções políticas ou religiosas, seja o terrorismo do Estado, nos deixa horrorizados a esta altura do século 21. O Estado democrático de direito prende, processa e pune, não invade, não amedronta, não tortura, não mutila, não assassina. As guerras punitivas ou de conquista não se justificam mais no século 21, sob pena de regresso à barbárie, a desatar o direito de um Estado invadir outro, pretextando os seus interesses, o seu poder soberano, os seus valores, a sua vingança. O uso da violência, que no interior das nações é monopólio do Estado secundum legem, deve ser monopólio de um organismo mundial na ordem internacional. Que prevaleça a força do direito, jamais o direito da força. No caso de Bin Laden o certo seria julgá-lo à revelia, localizá-lo, extraditá-lo e executá-lo. Seres humanos podem ser mortos por outros nos casos seguintes: legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento de dever legal ou coação irresistível. Afora esses casos o Estado pode tirá-la, observados due process of law e o direito de defesa, em caso de sentença transitada em julgado ou guerra, que exige ao menos um conflito entre Estados soberanos. A tal guerra ao terror contra pessoas físicas em qualquer lugar pode ter sido um ato político unilateralmente declarado para satisfazer a revanche de um povo injustamente atacado, mas feriu o direito internacional público e a soberania de todas as nações do mundo sobre o seu território. A guerra ao terror urbi et orbi esconde o unilateralismo da política externa americana desde quando o almirante Perry bombardeou Tóquio, há dois séculos, obrigando o Japão a abrir o seu mercado por força do lema open door, recomendado pelo expansionismo econômico da grande nação do Norte. (A formação do império americano, da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque – Ed. Civilização Brasileira, Rio, Moniz Bandeira).

Decerto a morte de civis, idosos e crianças, no Iraque, no Afeganistão e no Paquistão, onde somente no Vale do Swat houve um milhão de refugiados, é tão lamentável quanto o morticínio nas torres gêmeas. A vida tem o mesmo valor em qualquer lugar. A valoração é que muda. Um erro não justifica outros. No caso de Bin Laden não quero discutir se as leis da guerra (tratados internacionais) foram respeitadas, como, o direito à vida do soldado ou do inimigo rendido. O direito de fuga do prisioneiro é sagrado como o do pai de não acusar o filho. Matar um prisioneiro é crime de guerra e dá corte marcial, assim como a tortura para obter informações. Bin Laden o que menos desejava era cair prisioneiro do “grande Satã” (cada qual odeia o demônio que julga ser o seu oponente) a menos que um seu sósia lá estivesse para despistar e aliviar a pressão sobre a prisão do chefe. Getúlio, por menos, suicidou-se e atrasou em anos o golpe da direita. Os líderes não se entregam, se matam. Sócrates bebeu a sua cicuta, contra a tirania ateniense, Hitler ingeriu cianureto, Cleópatra deixou-se picar no seio pela áspide. Os comandantes japoneses faziam o harakiri ante a derrota iminente. Os holandeses preferiam o fundo do mar à derrota (o mar é o único túmulo digno de um almirante batavo). Os chamados suicídios políticos são tão inevitáveis como o do escorpião no meio do círculo de fogo. Em dada altura o líder sabe que a opção é essa: humilhação seguida de morte pelo inimigo ou suicídio evitando o duplo sacrifício. Entre os maometanos como entre os antigos germânicos morrer lutando leva a um paraíso cheio de bem-aventuranças. Ele, se não fosse assassinado, se mataria. Portanto, o debate entre homicídio e suicídio é vão.

A questão a colocar em debate é outra e bem diversa. Em um mundo que se entrelaça cada vez mais, a sua governança no século 21 comporta o predomínio político e militar de uma só nação? Economicamente, a multiporalidade está a impor-se definitivamente. Não estou a falar do FMI, do Banco Mundial, do BIS, da OCDE, da OMS nem tampouco da envelhecida ONU, surgida no pós-guerra há 60 anos. Essas instituições evidentemente serão reformadas e renovadas as respectivas governanças. A questão, alfim, é simples. Até quando os povos, as consciências, suportarão o unilateralismo, o livre agir em qualquer ponto do planeta de uma potência que se julga acima do resto do mundo? O futuro imporá em escala planetária a igualdade perante a lei internacional em nome da segurança de todos, nações e pessoas. Será o primado da lei e da isonomia. O Paquistão está certíssimo ao reclamar da invasão sem consentimento de seu território para atos de violência. O crime e o castigo de Bin Laden são indiscutíveis. Discutível é o modo como foi morto. O terrorismo se combate com os serviços de inteligência, em silêncio, e não com guerra entre nações, sacrificando vidas inocentes.

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