O varão de Plutarco

A Constituição é clara, confusos são os que forçam interpretações esdrúxulas e falsas crises entre os poderes da República.

Discutir que peculatários, corruptores ativos e passivos, na condição de parlamentares, após condenação do Supremo, continuem deputados federais em vez de ser presos parece a todos um grande absurdo.

Por primeiro, as hipóteses previstas na Constituição para a cassação de mandatos parlamentares. Reza o artigo 55: “Perderá o mandato o deputado ou senador: I (omissis); II (omissis); III (omissis); IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos; V (omissis); VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.” À sua vez, dispõem os parágrafos 2º e 3º desse mesmo artigo: o 2º – “Nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa”. O 3º – Nos casos previstos nos incisos III a V, a perda será declarada pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa.” O STF adotou a tese do inciso IV do artigo 55. A ampla defesa aqui é meramente adjetiva (falta de publicação do acórdão).

A corrente doutrinária minoritária e quatro ministros do Supremo entenderam que a expressão “direitos políticos” do inciso IV compreende apenas os direitos de votar e ser votado. É um argumento restritivo. Para muitos tratadistas a expressão “direitos políticos” significa uma universalidade (vários direitos e não apenas esses). O inciso VI, dessarte, dá sustentação à tese de que a cassação dependeria do parágrafo 2º suso transcrito, que exige maioria absoluta dos deputados (metade mais um dos membros da casa, por voto secreto e ampla defesa). Como consequência, em relação aos parlamentares condenados, a decisão do Supremo seria inócua, sem a prisão dos parlamentares delinquentes, por isso que, após a diplomação, só podem ser presos em flagrante delito de crime inafiançável (artigo 53, parágrafo 2º da CF).

Lado outro, o acórdão do STF não teria efeito constitutivo, ficando a depender de revisão da Câmara dos Deputados, com maioria governista de 80% (do contrário, não faria sentido assegurar ao parlamentar já sentenciado “ampla defesa” de cunho substantivo, somente possível em processo revisional de culpabilidade). Data vênia, peço licença para discordar. Indago a razão da existência simultânea dos incisos IV – perda ou suspensão dos direitos políticos; e VI – condenação criminal em sentença transitada em julgado como formas de perda de mandato. Acho correta a assertiva de que a defesa do mandato parlamentar visa proteger o povo votante e não o parlamentar eleito.

Mas em nenhum país o instituto da imunidade parlamentar terá tamanho elastério, como pretendeu a minoria da Corte. Ele visa proteger o lídimo exercício do mandato e não transformar os parlamentos em valhacoutos de bandidos que enxovalharam os votos neles depositados, ao ponto de, condenados pela Justiça, não serem cassados e tampouco presos, a transformar o Supremo num mero órgão opinativo, sem condições de tornar eficazes suas decisões.

Resta mostrar a lógica do inciso IV do artigo 55 contra o inciso VI do mesmo artigo. Neste último caso, cabe à Casa legislativa a que pertence o sentenciado aquilatar se a condenação justifica a cassação do mandato (ato constitutivo). Aplica-se aos crimes de menor potencial ofensivo e de branda reprovação social, como, por exemplo, condenação em crime culposo de atropelamento sem vítimas, ou de lesões corporais, assim por diante. Em casos que tais não se justificaria a cassação do mandato, mesmo sendo o condenado da oposição minoritária, daí o quorum elevadíssimo para a cassação.

À sua vez, os crimes para os quais a lei penal prevê, além da pena corporal ou restritiva de direitos, a perda de um ou mais direitos políticos, como a perda de função pública ou de mandato político, ante a gravidade dos delitos (peculato, corrupção) e a elevada reprovação social, a sentença já implica a perda dos mesmos. Tem ela natureza constitutiva (ato que cria, transforma ou extingue direitos), cabendo ao Poder Legislativo apenas declarar, para fins “interna corporis”, a perda do mandato político por ato da mesa da Casa, de ofício, ou mediante provocação de qualquer de seus membros ou de partido político, sob pena de descumprimento de ordem judicial, apropositando os crimes de desobediência e prevaricação (artigo 55, parágrafo 3º). Essa foi a melhor interpretação, porquanto preservou o Estado democrático de direito e a tripartição dos poderes. Andou bem o ministro Celso de Melo, juiz e jurisconsulto, ao encerrar a vexata quaestio como um varão de Plutarco. A Constituição é clara, confusos são os que não a compreendem ou forçam interpretações esdrúxulas e falsas crises entre os poderes da República.

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