O Egito outra vez

Erra quem achar que o mundo islâmico é uma coisa só. Por isso é tão diverso, como o mundo cristão.

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Algo esperado, com aparência de inusitado, ocorre no mundo islâmico 280 anos depois das convulsões do Ocidente. A Europa, no passado, já teve reis absolutistas, inexistência de direitos políticos e terríveis guerras religiosas entre católicos e protestantes. Tudo mudou, apesar da opressão dos reis e chefes religiosos. O mundo muçulmano, independentemente da etnia (turca, africana, árabe, persa, indiana, caucasiana – existem brancos europeus islâmicos – ou indonésios), prepara suas mudanças. O que se passa? A emergência de juventudes que não passaram pelo colonialismo europeu nem pela Segunda Guerra Mundial ou pela guerra fria entre os Estados Unidos e a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que influenciaram negativa e profundamente o Oriente Próximo, quase todo islâmico (exceto Israel, onde apenas 20% da população professa o islã). Tampouco vivenciaram a efervescência do pan-arabismo nacionalista, com a figura de Gamal Abdel Nasser, no Egito, assumindo dimensões míticas. Essas massas jovens vão além dos “jovens turcos” que, liderados por Kemal Ataturk, remodelaram o Império Otomano, ocidentalizando-o e recriando uma Turquia democrática que adotou o alfabeto ocidental e o Estado laico.

Cansados do marasmo econômico, da ortodoxia religiosa e da humilhação de emigrar para longe de seus países, eles querem liberdade política, o Estado laico, progresso econômico e mobilidade social. Os acontecimentos recentes na Tunísia, o mais desenvolvido país do Magreb (Mauritânia, Líbia, Tunísia, Argélia e Marrocos), logo se comunicaram ao poderoso Egito e, de certo modo, ao Líbano, ao Sudão e à Jordânia. O Irã há mais tempo tenta reprimi-los. Entre os jovens, duas tendências confrontam-se. Uma, radicaliza-se e torna-se extremista, com o objetivo de atacar o ocidente, depois de humilhações e interferências pretéritas e atuais. É nesta corrente que a Al-Qaeda, os talibãs, a Irmandade Muçulmana do Egito, o radicalismo saudita e o Hezbollah, recrutam seus combatentes. Na outra, majoritária, reside a esperança de uma renovação pan-islâmica de grandes proporções, aproximando vários povos – velhos e famosos protagonistas de episódios marcantes da história – de padrões econômicos, políticos e sociais, compatíveis com a modernidade.

Erra, entretanto, quem achar que o mundo islâmico é uma coisa só, por isso que é tão diverso como o mundo cristão. Os escandinavos diferem dos italianos e ingleses, que são diferentes dos chilenos, mexicanos e brasileiros. Afirma-se apenas que uma revolução cultural causada por novas gerações, a comunicação global, a internet e o crescimento econômico está em marcha. A Turquia (85 milhões), o Irã ou Pérsia (75 milhões) e a Tunísia (11 milhões) são os lugares onde o porvir está mais à vista. A Indonésia, a toda hora, forceja por mais democracia, sem falar que se torna rapidamente uma economia de mercado com 320 milhões de habitantes. A Tunísia acaba de derrubar uma plutocracia laica e o Irã enfrenta uma guerra surda entre os aiatolás xiitas e os ideais libertários da classe média e dos jovens, mormente nas universidades.

Bem a propósito, a Turquia é uma potência média emergente, com 500 anos de tradição geopolítica. Em meados do século 19, dominava toda a área que formara o império de Alexandre, o Grande, incluindo o Egito. A Turquia, integrante da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), é uma república democrática e laica, na qual a separação entre o Estado e a religião é cláusula pétrea da Constituição, com o Exército garantindo seu cumprimento. Em que pese 90% da população professar o islamismo, a liberdade religiosa é preceito fundamental, vedado o uso de signos e trajes religiosos em lugares públicos (espaço estatal) em paralelo com a França. A democracia turca supera a de Israel, por que o Estado judeu é religioso, fundado na Torá e deixa o direito de família ser penetrado pela fé religiosa, além de vedar aos cidadãos israelitas não judeus direitos exclusivos dos judeus, sem negar o valor das instituições de Israel, notadamente a Suprema Corte, a universidade e a imprensa. O Líbano, terra com 6 mil anos de civilização (antiga Fenícia), criadores da escrita com letras a partir da escrita cuneiforme dos sumérios e caldeus, é outro centro de transformações. O específico do Líbano é sua identidade profunda com a Galileia e, consequentemente, com o cristianismo. O aramaico falado pelo nazareno era originário de Aram-Damasco (Síria). O Líbano está dividido em partes quase iguais entre cristãos, drusos, sunitas e xiitas, daí a sua complexidade. Que a diplomacia brasileira se faça presente na cena do Oriente Próximo, até pelos 10 milhões de descendentes de árabes que vivem entre nós. Em vez de reis e tiranos pró-EUA, islã, democracia e capitalismo para todos em Estados laicos. Essa tese pegaria bem, muito bem.

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